I
Debruçou-se
sobre a parede da varanda, com os cotovelos frágeis, e mirou uma ou duas
pessoas que passavam em direção a linha do trem. Como que por impulso, deu um
grito bem alto, de modo que quase acordou boa parte dos moradores do cortiço.
─
Ei! Já vai, heim!? Pensa que não sei para está indo, Maria-rapousa? ─ deu uma
gargalhada alta ─ Que Deus tenha piedade do teu bendito marido, que sai de casa
de madrugada e ainda tem que aguentar os passos tortos da esposa indecente!
─
Ah, vá! ─ gritou a mulher do fundo da rua.
─
Respeite-me sujeita indecente, sou uma dama, sabia? ─ Só moro nesse lugar por
diversão, imagina se precisaria disso aqui para viver! ─ Virou as costas e
sentou-se na cadeira de balanço no quanto da varanda e continuou a olhar o
movimento da rua.
─ Ei, seu Bernardo! Já vai trabalhar? E nem
cumprimenta a vizinha-primeira-dama? ─ Gritou mais uma vez, dessa vez para um
senhor barrigudo, que atravessava a rua com pressa.
O
senhor acenou educadamente.
─
Ei, Bicha metida! Passa e finge que nem conhece os vizinhos? Até parece que
todo mundo dessa rua não sabe que tu lava o cabelo com sabão de côco e só come
pastel frito no óleo sujo com caldo de cana, na rodoviária.
A
mulher mostrou-lhe o dedo do meio e seguiu apressada.
─
Sem-educação! Mas esperar o que de “gentinha” como você? ─ resmungou enquanto
conferiu o cordão de ouro no pescoço.
─ Lá vai, ó, Carlitos! ─ apontou o dedo para
o final da rua, indicando uma moça magra ─ dizem que tem três amantes e já
abortou cinco, santo-Deus! ─ gesticulava ao gato de estimação, que estava
sentado ao seu lado, como se ele conseguisse entender tudo o que dizia.
─
Lá vem seu Valdemar! ─ sorriu alto e acenou ─ esse sim é homem digno, cuida da
esposa e dos filhos, e nem de longe se parece com os trastes dessa pensão.
─ Já vai pegar a maria-fumaça, seu Valdemar? ─
gritou
O
senhor acenou, positivamente, com o polegar.
Começou
a cantarolar uma música de letra curta e satírica.
“
Quando era jovem eu não abria… não abria… não abria... mão de uma doze de
cachaça. Agora abro... abro... abro… a
porta de casa para o vento entrar.”
─ Lá vem a beata insuportável! ─ fez uma cara
azeda ─ Diz ela que todo mundo irá para o inferno. Inferno é ter que olhar para
cara dela a esta hora da matina!
A
senhora, que usava um crucifixo no
pescoço, passou com uma bíblia aberta e rezando algo que não se ouvia.
─ Vá, vá! E o que o diabo a carregue! ─
cuspiu do alto da varanda.
─ Lá vem Jorgito, o rapaz de meus olhos! ─
riu abolhada ─ Ei, Jorgito, a que devo o ar da sua graça?
─
Imagina, eu quem fico feliz em encontrar uma dama como a senhora, todos os dias
antes de sair ao trabalho.
─
Nem venha com muita conversa, não. Sei bem que queres o meu ouro. Num dô... num
dô. Ninguém toca na herança do falecido!
─
Mas o que é isso, senhora? ─ espantou-se o jovem ─ Eu? O que haveria de querer
com teus dotes?
─
Conheço esses tipões do teu partido, Jorgito! Passa a cantada na velha, chama
de meu amor, ilude, faz cafuné, a velha dorme e vai embora com tudo que tem
direito!
O
jovem deu um gargalhada gostosa.
─
Mas madame Júlia, tenho cara desses tipões a que se refere?
─
Não sei não, heim, Jorgito! Não sei não! Esse teu bigode nunca me enganou, e
esse jeito de malandro-abala-coreto me diz que devo deixar sempre um pé atrás.
O
jovem gargalhou mais uma vez.
─
Hoje a senhora está é bonita, não está?
─
Sempre, querido! Uma dama como eu não se dá ao desfrute, estou sempre produzida
para os meus admiradores. Abalo o coração dos senhores casados e infernizo o
sono das senhoras dona-de -casa. Ora, pois.
─
Está certa! Uma rainha nunca perde a majestade, confere? ─ tirou o chapéu da
cabeça e reverenciou-a ─ agora deixe-me ir, madame, se não perderei a
maria-fumaça.
─
Vá com Deus, meu filho! ─ acenou.
Enquanto
o jovem ia ao rumo de sua condução.
Dona
Júlia, vulgo madame, madama, baronesa do café , atriz de teatro de revista,
vedete e muitos outros ditos, ficou ali tomando um café preto e tragando seu
velho e longo cigarro.