quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A que caminha entre os lobos


Lá vem a velha, que habita os lugares onde todos desconhecem e onde jamais pisaram; se por lá chegou, se perdeu do bando ou dos caminhos por onde andara. Onde se chega à procura do algo esquecido ou daquilo que nunca encontrará. Passou pisando firme entre as estradas lamacentas, seus passos eram ligeiros como os dos lobos, no entanto, se desejas ver seus rastros, é mera perda de tempo. A cada passo seu, o pé toca o chão, mas o chão não registra o seu caminhar, caminha leve, distante, os passos são irregistráveis, intocáveis, surreais. Nas costas a responsabilidade tocante de recuperar partes, os ossos largados à estrada. Aqueles constituem o caminho, que refaz o esqueleto, das perdas, dos ganhos, da construção. Ora, pedras soltas, peças a alinhavar-se, retocar, colocar novamente ao ritmo, torná-las ao canto, ajustar ao corpo, livrá-las do pranto.
Dos atos perspicazes, não se ilude, não é frutos dos enganos, seus cabelos cobrem-lhe o rosto e o corpo robusto impede os movimentos ligeiros, mas é mais rápida que o pensamento. De sua boca saem os mais distintos sons: ora pia, carcareja, late, silva, ora a língua arrisca algumas palavras humanas. Instrui ao não-erro, não erra jamais, mostra o cadeado, mas não entrega as chaves, nunca, nunca vezes nunca, definitivamente nunca. Sua lição é a não-entrega, é o que pode dar certo, o que o erro não toma, não trata do não-tratado, ignora os intratáveis, dispensa os tratantes. Ressuscita perdidos às margens, sufocados pelo desespero, devora o medo, revive em cada canto almas desalojadas. Mira, recolheu mais ossos, mais alguns, dessa vez dois grandes. Dois robustos, dois fêmur, o par da erguição, do levantar a'lma, do avivar o que se fora. Devolver o ar, soprar os pulmões, inspirar e expirar, respirar de novo, um novo, de novo. Um ovo. Um começo, o brotar de ideias, o subir à garganta de palavras enclausuradas, trazer à margem ossos, os do passado, os que não estão mais aqui, voltar a engrenar, acompanhar o manejo, apertar a folga.
Mora entre os índios do Centro-Oeste ou sob as planícies do cerrado, não se sabe. Ou será dentro do poço? Já a viram andando montada em labaredas de fogo, do sul ao norte, do leste a oeste. Seu nome se confunde pelas estradas, é a Fazedora, A mulher dos Ossos, A trapaceira... e outros nomes impronunciáveis. Não diga seu nome, não abra a boca para convocá-la, não se deve chamá-la. Não obedece aos chamados, não é adestrada, é selvagem, agreste, chame-a estalando os dedos e os devorará todos. Sentiu o cheiro dos ossos ao longe, aproximou-se e investigou-os mais uma vez, dessa vez seis costelas, recolheu-as, dentro do saco corpos a formar. Cantará noites sobre esqueletos, reerguerá muitos, a voz que os toca vem de dentro, do seu íntimo, de mais longe, da alma. Aos ouvidos dos que se foram, deita as mais cruéis verdades, sussurra o medo, o alívio, toca o desalinhado, sua voz alcança o mais fundo, mergulha entre sentimentos, em busca de religar o self, provoca a reconexão. Dá o braço para o alavancar, segura firme os pulsos dos caídos, mas já à margem, solta sem piedade. Cair ou ergue-se, escolhas farás, quem dá a água,  não dá o pão.
Seu ofício é recolher os ossos dos que se foram, e destes faz as paredes de sua casa. Porém, é dos lobos que gosta, desce sorrateira das colinas em buscas de ossos a compor o esqueleto do animal inteiro. Canta sobre suas entranhas, faz a carne, faz as tripas, faz os pêlos, faz o lobo inteiro. É da canção que faz a vida. A vida-éter que sustenta os vivos, nutre o broto, dá de comer aos que tem fome, sacia os mais miseráveis sedentos. Viaja de canto em canto, no ontem, no agora, no amanhã. Não está aqui e nunca esteve. Está aqui, está ali, está onde quer. Não está em lugar nenhum. Atravessa os dois mundos, os dos homens e dos espíritos, como sempre rápida, ninguém a percebe. Quando se vê, já veio e já foi, e o que ficou? O aprendizado, o reencontro, o achado do perdido, o revitalizar do ser, a chance de se ver o escondido, o beijo em face de verdade, o retorno da racionalidade. Tão velha, tão antiga que sua idade não se sabe, mais longeva que os próprios oceanos, não tem idade, é atemporal. No semblante cicatrizes profundas, registros de todos os cantos que passara, de todos os que tocara, de todos que reavivara, de todos que devolvera a alma. É o que é, sabe o que é, sabe de todos, sabe de tudo, em estradas a fora e em estradas adentro, todos a chamam A Que Sabe. Chame nomes, chame os instintos, chame os dons, chame os nobres, chame os pobres, chame-a de A Loba.

A força selvagem inimitável, que a quem toca traz humanidade, humaniza, faz humano, faz animal, faz humano-animal e animal-humano. Dona do escuro, do que não pode ser visto, do que está às sombras, que não se vez à luz do dia.  Ela é o lobo, os lobos, o lobo é ela, os lobos a faz, ela faz os lobos, os lobos fazem dela A Mãe Loba. Os galgos dos lobos são rápidos, mas ela é mais, passa à frente, atravessa o rio respingando água, mas a água não cai. Perpassa os raios do sol, transforma-se em lobo, o lobo se transforma em mulher. Um lobo, uma mulher, o lobo em mulher, mulher em lobo, mulher-lobo.