quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Memórias de uma dama mal-comportada


I


Debruçou-se sobre a parede da varanda, com os cotovelos frágeis, e mirou uma ou duas pessoas que passavam em direção a linha do trem. Como que por impulso, deu um grito bem alto, de modo que quase acordou boa parte dos moradores do cortiço.
─ Ei! Já vai, heim!? Pensa que não sei para está indo, Maria-rapousa? ─ deu uma gargalhada alta ─ Que Deus tenha piedade do teu bendito marido, que sai de casa de madrugada e ainda tem que aguentar os passos tortos da esposa indecente!
─ Ah, vá! ─ gritou a mulher do fundo da rua.
─ Respeite-me sujeita indecente, sou uma dama, sabia? ─ Só moro nesse lugar por diversão, imagina se precisaria disso aqui para viver! ─ Virou as costas e sentou-se na cadeira de balanço no quanto da varanda e continuou a olhar o movimento da rua.
 ─ Ei, seu Bernardo! Já vai trabalhar? E nem cumprimenta a vizinha-primeira-dama? ─ Gritou mais uma vez, dessa vez para um senhor barrigudo, que atravessava a rua com pressa.
O senhor acenou educadamente.
─ Ei, Bicha metida! Passa e finge que nem conhece os vizinhos? Até parece que todo mundo dessa rua não sabe que tu lava o cabelo com sabão de côco e só come pastel frito no óleo sujo com caldo de cana, na rodoviária.
A mulher mostrou-lhe o dedo do meio e seguiu apressada.
─ Sem-educação! Mas esperar o que de “gentinha” como você? ─ resmungou enquanto conferiu o cordão de ouro no pescoço.
  ─ Lá vai, ó, Carlitos! ─ apontou o dedo para o final da rua, indicando uma moça magra ─ dizem que tem três amantes e já abortou cinco, santo-Deus! ─ gesticulava ao gato de estimação, que estava sentado ao seu lado, como se ele conseguisse entender tudo o que dizia.
─ Lá vem seu Valdemar! ─ sorriu alto e acenou ─ esse sim é homem digno, cuida da esposa e dos filhos, e nem de longe se parece com os trastes dessa pensão.
 ─ Já vai pegar a maria-fumaça, seu Valdemar? ─ gritou
O senhor acenou, positivamente, com o polegar.
Começou a cantarolar uma música de letra curta e satírica.
“ Quando era jovem eu não abria… não abria… não abria... mão de uma doze de cachaça.  Agora abro... abro... abro… a porta de casa para o vento entrar.”
  ─ Lá vem a beata insuportável! ─ fez uma cara azeda ─ Diz ela que todo mundo irá para o inferno. Inferno é ter que olhar para cara dela a esta hora da matina!
A senhora,  que usava um crucifixo no pescoço, passou com uma bíblia aberta e rezando algo que não se ouvia.
   ─ Vá, vá! E o que o diabo a carregue! ─ cuspiu do alto da varanda.
  ─ Lá vem Jorgito, o rapaz de meus olhos! ─ riu abolhada ─ Ei, Jorgito, a que devo o ar da sua graça?
─ Imagina, eu quem fico feliz em encontrar uma dama como a senhora, todos os dias antes de sair ao trabalho.
─ Nem venha com muita conversa, não. Sei bem que queres o meu ouro. Num dô... num dô. Ninguém toca na herança do falecido!
─ Mas o que é isso, senhora? ─ espantou-se o jovem ─ Eu? O que haveria de querer com teus dotes?
─ Conheço esses tipões do teu partido, Jorgito! Passa a cantada na velha, chama de meu amor, ilude, faz cafuné, a velha dorme e vai embora com tudo que tem direito!
O jovem deu um gargalhada gostosa.
─ Mas madame Júlia, tenho cara desses tipões a que se refere?
─ Não sei não, heim, Jorgito! Não sei não! Esse teu bigode nunca me enganou, e esse jeito de malandro-abala-coreto me diz que devo deixar sempre um pé atrás.
O jovem gargalhou mais uma vez.
─ Hoje a senhora está é bonita, não está?
─ Sempre, querido! Uma dama como eu não se dá ao desfrute, estou sempre produzida para os meus admiradores. Abalo o coração dos senhores casados e infernizo o sono das senhoras dona-de -casa. Ora, pois.
─ Está certa! Uma rainha nunca perde a majestade, confere? ─ tirou o chapéu da cabeça e reverenciou-a ─ agora deixe-me ir, madame, se não perderei a maria-fumaça.
─ Vá com Deus, meu filho! ─ acenou.
Enquanto o jovem ia ao rumo de sua condução.
Dona Júlia, vulgo madame, madama, baronesa do café , atriz de teatro de revista, vedete e muitos outros ditos, ficou ali tomando um café preto e tragando seu velho e longo cigarro.