quarta-feira, 29 de maio de 2013

Meus bebês


      
            
Adentrou o coche, ligeiro. Ainda na porta, adiantou-se ao cocheiro.
 ─ Irá passar em frente ao Castelo Real?
─ Passarei sim, jovem. Entre ─ Apresou-o o cocheiro.
Correu os olhos sobre os passageiros já sentados, localizou uma cadeira vazia no início e sentou-se. Enquanto passeava os olhos pelas folhas do seu livro de mão, a passageira do assento da frente perturbou-o.
 ─ Olha lá, olha lá! ─ resmungava inquieta ─ brincadeira, viu... brincadeira!
─ Oi? ─ disse o jovem, entre os dentes, e coçou a cabeça.
─ Ali, filho, olha lá! ─ apontou rapidamente para a placa ao quanto da estrada ─ viu? Estão trocando as placas antigas por placas novas, com a respectiva tradução para o inglês, tudo por conta dos jogos!
 ─ É verdade, nem tinha visto ainda.
 ─ Brincadeira, viu....brincadeira um negócio desse ─ insistia ela ─ um país desse com tanta pobreza, com tanta desigualdade, com tantas mazelas, e tantas outras necessidades... investindo em plaquinha traduzida, só para agradar gringo.
 ─ Aham, a senhora tem razão.
 ─ Sabe o que me revolta? O descaso com os pilares fundamentais da sociedade: saúde, educação e segurança. ─ dizia com o dedo erguido ao céu ─ não repassam a verba necessária para esses segmentos, e em virtude disso, os mesmos não funcionam direito. E para onde está indo esse dinheiro? Ora bolas, para plaquinhas para gringo ver. Ah, vá a ....!
 O jovem confirmava, balançando a cabeça. Enquanto a passageira, ao seu lado, debochava com risinhos abafados.
 ─ Está vendo isso aqui? ─ abriu a sacola que levava sobre a perna e retirou um pote de barro, redondo. ─ é marmita! Sabe de onde vem?
 ─ Não, senhora.
─ Peguei em um manifesto de rua, de onde acabei de vir. Após o ato, os organizadores distribuíram aos participantes; algumas pessoas não quiseram e me deram. Vai ser a minha ceia e de meus meninos; consegui pegar três, olha! ─ abriu um e mostrou o que tinha dentro ─ É comida de primeira, já estou até com fome só de olhar. ─ deu um sorriso triste.
O rapaz a olhou nos olhos, e percebeu em seu olhar todo o histórico de sofrimento pelo qual aquela jovem senhora havia passado nos últimos meses. As marcas de expressão em seu rosto registravam cada dia de trabalho duro enfrentado, cada desaforo engolido, cada palavra omitida em necessidade.
 ─ Sou estudada, rapaz. Não sou pedinte, não. ─ adiantou-se em corrigir qualquer juízo de falso valor que pudesse ter sido criado pelo jovem ─ estou levando essas poções de comidas para casa, porque o que ganho não está dando para sustentar a mim e aos meus garotos. Mas tenho estudo, sou enfermeira da Santa Casa!
─ É uma pena, não? ─ insinuou o rapaz.
─ O quê? ─ quis saber ela.
─ Que a senhora, com todo esse estudo, tenha que passar por tudo isso.
─ É filho, mas vá se acostumando, os profissionais mais importantes do país são os que mais apanham do Estado. É médico, enfermeiro, professor...
 ─ Serei professor.
─ Lamento muito, jovem.
 ─ O quê?
─ Que tenha que passar por isso. Não desejo o que passo a ninguém.
 O jovem não respondeu. Calou-se.
 ─ Trabalho três turnos para poder sobreviver, espero que não precise fazer o mesmo.
 ─ Espero que isso um dia mude.
─ Mudará sim, rapaz. O dia em que aprendermos a pensar.
 Despediu-se e desceu do coche levando consigo sua sacola cheia de marmitas e de esperança.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Quero ser bonita



Quero ser bonita, dizia. Arrastou uma das cadeiras do quarto para perto do gigante espelho de cobre, no quarto da mãe. Sobre a cama já tinha selecionado os melhores pós, perfumes, joias, e tudo o mais que achava que lhe daria uma aparência mais feminina e que lhe deixasse o mais próximo da imagem de suas duas irmãs mais velhas e de sua mãe. Correu ao guarda-roupa e retirou um vestido cor de açafrão, o mais decotado dos; se vestiria algo de mulher adulta, teria que ser o mais ousado possível. Antes de se vestir, despiu a roupa e deixou-as de lado.  De frente ao espelho observou-se e mirou os peitos, passou a mão sobre eles. Beliscou as pontinhas, será que algum dia irá crescer? Pensou. Nesse momento o que mais queria era vê-los grandes tal com os de sua irmã mais velha, correu à gaveta do roupeiro e retirou um dos corsets da mãe e alguns pares de meias. Com dificuldade ajustou-o  no tronco e subiu até a região do busto. Olhou melhor e achou que lhe faltava algo, pegou as meias e fez duas trouxinhas redondas e as encaixou dentro das cavidades dos seios. Pronto, agora tenho peitos! Riu.
Com tamanha dificuldade vestiu o vestido da mãe sobre o corpo magro, ficou meio largo, e não se agradou. Foi até uma das gavetas da cômoda, encontrou um laço de fita e ajustou sobre a cintura. Ficou estranho, calculou. E não queria vestir algo que não lhe caísse bem, tirou-o  então, e deixou de lado. Voltou ao roupeiro e tirou dessa vez um vestido de festa, colocou sobre o corpo, e observou que estava grande demais. Então teve uma ideia genial. Sobre a penteadeira da mãe apanhou uma tesoura grande, dessas de costura; deitou o vestido sobre a cama e mediu atrapalhadamente um palmo, e pronto, cortou sem dó. Ótimo, agora está perfeito, constatou. Pôs sobre o corpo com dificuldade, travou uma guerra para abotoar os botões traseiros. Mulher adulta sofre, praguejava mentalmente. Pronto, estou vestida.
Olhou para os pés, pequeninos, e sem vestígio de qualquer marca feminina. Queria ousar, mulher não usa sapato baixo, sapato baixo é para homens, repetiu alto várias vezes. Em uma das arcas, apanhou um desses sapatos de salto bem grande. Calçou, e percebeu que estava grande em seus pés, mesmo assim com esforço deu um jeito de prender as amarras firme no calcanhar, não podia cair de jeito nenhum, sabia bem disso. Para testar, caminhou algumas vezes diante do espelho, treinou por alguns minutos seguidos, sem parar. Riu de si, que de tão jovem desconhecia o desequilíbrio trazido pelos calçados altos. Tropeçava, mas nem ligava, sabia que logo estaria andando como as mulheres elegantes que via nos salões de festa. Parou e sentou sobre a cama, olhou para todos aqueles apetrechos usados para maquilar o rosto, pensava em como usá-los. Sabia que a mãe e as irmãs os usavam, mas como, não tinha nenhuma idéia; apenas tinha a certeza que elas ficavam deslumbrantes e era assim que queria ficar.
Começou pelo batom, lembrou que sabia passar muito bem. De frente para o espelho, abriu o pote pequeno, passou o dedo indicador na mistura, e começou a modelar a boca com a cera grudenta vermelha, começou pelo lábio inferior e seguiu para o superior. Em seguida limpou os cantos com o outro dedo, esfregou os lábios, e claro, fez biquinho, tal como aprendera vendo as irmãs se maquilando. Mirou um dos frascos claros com uma pasta esbranquiçada, já viu a mãe passando isso pelo rosto. Abriu o pote e deu a primeira dedada e levou a pasta às bochechas. Começou pela esquerda, esfregando devagar, jamais perdendo a delicadeza, ouvira certa vez que a delicadeza é a virtude das mulheres, e é o que queria ser naquele momento – mulher de verdade. Percebeu que o rosto embranqueceu, achou estranho, mas sabia que todas as  mulheres da Corte usavam isso, e não deixaria de usar também. Agora é a vez dos olhos, disse baixinho. Fechou a pálpebra esquerda. Com uma das tinturas que escolheu ─ a dourada ─ começou a pintar levemente a região, de modo desajeitado, borrava sempre os cantos, foi o que fez também com o outro olho. Pronto, o rosto estava todo pintado. Mas e o cabelo? Tinha o cabelo nos ombros, mas queria deixá-lo mais bonito, então prendeu algumas mechas com presilhas de prata, das irmãs; deixou-o todo dividido, certamente ficou bonito, pensou para si.
Voltou-se mais uma vez para o espelho, deu uma volta, jogou o cabelo e conferiu os quadris, sempre via as mulheres fazerem isso, não sabia para quê, mas achava que era necessário. Foi até a penteadeira e buscou alguns anéis, alguns definitivamente não entravam em seus finos dedos, um entrou no dedão, e outro minúsculo entrou no dedo médio. Este menor, tinha um par, talvez para ser usado no mesmo dedo, não se sabe. Pegou o outro e ficou comparando-os. Essas serão as alianças do meu casamento com o Dom Rafael, disse baixinho, enquanto fazia cafuné em seus próprios cabelos.
Ouviu o barulho de um abrir de porta, lá embaixo. Qualquer outra criança em sua idade teria corrido para se esconder com medo da mãe, mas permaneceu onde estava, nem se mexeu, continuou se admirando no espelho, se achando a menina mais linda do mundo. De repente a porta às sua costa se abre, e duas figuras surgem no lastro.
 ─ O que está fazendo? ─ desesperou-se a mãe.
─ Quero ser bonita ─ respondeu sorrindo.
O pai esmurrou a parede. ─ Tire já essas roupas, agora!
─ Calma, Dom Eduardo, por favor. ─ a mãe tentou acalmar o marido ─ É só uma criança!
 ─ Não, isso está muito errado, o que você quer que eu faça? Que eu aceite esse comportamento indecente?!
─ Dom Marcelo, vem aqui na mamãe, vem? ─ a arquiduquesa tentou acalmar a situação ─ Meu filho, você não pode usar as roupas da mamãe, você é um menino.
─ Sou menina! ─ respondeu com convicção.
  ─ Não, meu filho, você não é menino, você é me – ni - no...
 ─ Sou menina!  ─  insistiu
─ Não!  Isso não pode estar me acontecendo. ─ o arquiduque colocou as mãos sobre a cabeça, em desespero ─ primeiro a brincadeira com as bonecas, e agora isso? Até onde isso vai chegar?
─ Papai, eu sou menina, não é difícil de entender, a ama me explicou que…
─ VOCÊ NÃO É ME – NI - NA! PARE COM ESSAS ABERRAÇÕES!! ─ o pai esbofeteou o rosto da criança.
O menino disparou a chorar.
 ─ PARE! COMO OUSA?!  ─ A mãe correu, agarrou o garoto e o pressionou sobre seu corpo, e em defensiva berrou . ─ SAIA DAQUI, SEU BRUTO, SAIA DAQUI!
O arquiduque empurrou a arquiduquesa e levantou a mão mais uma vez ao menino travestido, bufou e afastou-se.
─ MAS...COMO OUSA?! ─  angustiou-se a arquiduquesa.
 ─ O que está acontecendo? ─ perguntaram duas vozes recém-chegadas à porta, em uníssono.
─ Ah, céus… Dom Marcelo, o que você fez?  ─ perguntou uma delas, espantada, ao olhar para o irmão trajando roupas femininas e todo pintado.
A que parecia ser a mais velha, riu, timidamente.
─ Eu já sabia.
O pai também a silenciou com uma bofetada sobre o rosto. ─ CALE-SE!
─ SEU TROGLODITA! VÁ EMBORA! ─ a mãe levantou-se rapidamente para a acudir também a filha. ─ GUARDAS! GUARDAS!
Três soldados entraram rapidamente ao quarto.
 Vossa Alteza! ─ disseram em uníssono, ao curvarem-se diante da arquiduquesa.
─ Capitão Heitor, e demais cavalheiros, ordeno-lhes a prisão do arquiduque! Por desacato à minha autoridade! ─ ordenou ela.
─ Não ousem encostar-se a mim! ─ proferiu o arquiduque.
 ─ Prendam-no agora! ─ insistiu a arquiduquesa.
─ Você não pode fazer isso! ─ choramingou ele.
 ─ Não? ─ riu desdenhosa ─ até onde sei sou a senhora dessa casa, as ordens aqui cabe a mim, senhor meu marido!
 ─ Prendam-no agora e comuniquem à Sua Majestade sobre a prisão do arquiduque.
─ Vossa Alteza! ─ os soldados curvaram-se novamente a arquiduquesa e agarram o arquiduque pelos braços.
─ Dona Rafaela, por favor, para que tanto?
─ Para que tanto? ─ desdenhou novamente a arquiduquesa ─ O que dirá mamãe ao saber que acabara de ferir a honra do Duque e da Duquesa de Campos, ao agredi-los violentamente em minha frente?
─ Por favor, minha senhora, não envolva a Rainha nesses assuntos particulares.
─ Reze para que ela não guilhotine sua cabeça na primeira hora do dia de amanhã! ─ virou as costas ao arquiduque e ordenou aos guardas que os levassem embora.

domingo, 26 de maio de 2013

Diário de Ana fulana de tal I



Viu aquela imagem magra, pálida, olheiras fundas, corpo esguio, cara de quem não dormia há séculos. Arrumou os cabelos, quando passou a mão por entre as mechas percebeu um punhado de fios soltos entre os dedos. Preocupou-se. Olhou a barriga funda, parecia estar quase sem vida, comprimiu-a e percebeu que parecia não ter mais órgãos. O que houve a mim? Será que apanhei uma moléstia? Tornou a olhar a si e olhou aos dedos dos pés, o pé tão branco e as veias saltadas sobre os músculos, causava-lhe repulsa, afastou os olhos e correu pelo quarto meio-escuro, em exceção pela luz do sol fraco que adentrava o recinto pouco convidativo. Ergueu a camisola, olhou as pernas, eram magras como há anos não tinham sido, pensou ─ seria isso que o teria afastado de mim? Não quis saber, correu a cama, sentou, buscou com os pés as sandálias de lã e tomou a calçá-las. Voltou-se ao roupeiro em busca de algo a vestir, pegou o primeiro vestido que viu a frente, pouco importava agora o qual era mais bonito e o que era mais feio, não sairia ─ por que se preocuparia com a aparência? ─, ou melhor, há tempos não se convencia em estar bela, e agora não seria esse o momento para tais brigas com o ínfimo. Agora estava sentada sobre a penteadeira e pegou-se a pentear os longos e finos cabelos, com muito cuidado, lembrou do seu estado fraco, e que se descuidasse cairia aos montes, será que o povo desejaria uma rainha careca? Indagou. Não, não desejaria. Embora soubesse que a tal altura, eles desejariam, certamente, que uma mulher não tivesse jamais se sentado ao trono.
Pouco se dava ao que o povo dizia de sua política, recordava que o que mais tinha feio nos últimos meses foi dedicar sua vida integral ao que desejavam, e o que tinha ganhado com tudo aquilo? Nada. Apenas ingratidões e pouco valorizava sua dedicação e fingiam gostá-la, mas no fundo sabia que seus falsos júbilos eram tão repugnantes como as mais graves das chagas. E nesse momento não queria preocupações, apenas queria estar apta a raciocinar com razão e deixar de lado qualquer interferência que pudesse lhe arrancar do mundo e fazer-la distante por alguns segundos.
Sabia que tinha obrigações, e que estas não poderiam ser substituídas por pensamentos fracos que lhe vinham à cabeça e voltavam ao raio que os tinha trazido, com a mesma força. Precisava estar forte diante do velho padre, para dizer o que tinha vontade e jamais poderia pensar em hesitar e tampouco ser contraditória em suas palavras, porque qualquer passo mal dado lhe fadaria o infortúnio de voltar ao mesmo estágio de onde saiu ─ fraca e impotente ─ e já não desejava estar mais ali, queria estar distante de toda aquela realidade que a consumia e que a nada trazia. Voltou ao espelho de onde tinha emergido agora pouco. Sentiu-se fraca. Mas ergueu-se, agarrando a forças que não sabia de onde brotava. Bateram a porta.
 ─ Entre! ─ Ordenou.
─ Majestade ─ a figura de cabelos bagunçados e trajando trapos, adentrara a pouco e se curvou diante da rainha. ─ Devo ordenar que seja servido seu desjejum?
─ Não sei tenho vontade de deixar a clausura desse infeliz quarto ─ disse cerrando os punhos e caminhando sobre o nada, pelo piso do quarto. ─ Onde está ele?
A escrava abaixou a cabeça e ficou desajeitada.
─ Anda, lhe fiz uma pergunta! ─ irritou-se ─ Ou será que terei eu mesma que lhe arrancar as respostas junto com sua língua?
─ Está lá em baixo, senhora, dormiu no quarto de um de suas aias de companhia.       
─ Desgraçado!
─ Descul…
─ Suma da minha frente e leve junto com você o seu desjejum para o mais profundo dos infernos!
─ Majestade. ─ a escrava curvou-se mais uma vez e deixou o quarto a passos ligeiros.
                 
Ana de …, mais uma vez sentia o pesar de estar a frente de um reino falido e que lhe trazia tantas dores de cabeça tal como o seu casamento agourento com o Duque de Carvalho. Inclinou-se sobre a cama e tornou a chora e esbofetear os travesseiros. Sentia-se mal assim como tinha se sentido durante todo o verão passado, e sabia como poderia se sentir de tal maneira, pensava ser sempre uma mulher de tanta garra e que encarava a pior das situações sempre com pés no chão. Não sabia ao certo quando e como ali tinha chegado, sabia que o fundo do poço lhe convidava; ou era essa a sensação que lhe vinha a mente de quando em quando. Desde abrir os olhos no começo do dia até o fechar dos mesmos, no final deste. Sabia que durante muitos meses as coisas lhe fugiram de um total controle, por mais que tentasse manter o ritmo da realidade, sempre permanecia na inércia de uma abstração que lhe descia a garganta de maneira tão cruel e dolorosa.
Quando o pai ainda lhe era presente, pensou que todo o ofício de governar um povo lhe tinha sido passado, mero engano. Ao sentar ao trono de pedra, percebia que quanto mais achava estar por cima das ordens, eram estas que lhe acorrentava as mãos de maneira rápida e certeira, sem pena, e ligeira. Sabia que para início de conversa, ser mulher e ser político eram tarefas distantes à época, dizia a grande maioria; por mais que nos últimos anos tentava não se convencer dessa afirmação insolente . Seu fraco coração parecia se convencer fielmente de tal afirmativa. Tentou de todo modo se mostrar diferente dessa aparência que lhe caiu nos últimos meses, mas era difícil, e ora como era. Embora quisesse ver a diferença frente aos seus olhos, ela não estava ali quando precisava.
       

       


Instinto de lobo


                                        I

Sobre a tribo Baruá caia o mais duro dos regimes civilizacionais. Criados eram os guerreiros, entre duros treinamentos e pouco tempo vago, para que não tivessem tempo ao menos de respirar direito e tampouco se sujeitassem a pensamentos que estivessem à margem de suas vidas árduas. O capitão gritava em bom tom, diariamente, que os guerreiros Baruá eram homens apenas por terem nascido presos a um corpo humano, mas que o seu instinto e alma eram tal como o do lobo-guará, a quem deveriam seguir e espelhassem enquanto soprassem vida. Existir enquanto guerreiro tribal era uma virtude, certamente havia suas dificuldades, mas estas deviam ser descartadas enquanto era tempo. A maioria dos homens ali presentes fora submetidos ao calor da batalha desde tenra idade, ainda em vestes joviais, ouvia aos seus patras dizer que homem Baruá é homem guerreiro, ser do exército é honra, o contrário é fracasso de vida. Desta forma, homens ali nascidos poucas escolhas tinham. Tens braços fortes e aptidão a segurar uma lança? É para o exército a que nasceu, meu filho! Ouviam.  O Capitão seguro de si, autoritário, e de pouca prosa, antes das baterias de exercícios, recitava religiosamente aos rapazes o aun, o guia do guerreiro, mais tarde chamado de manual de sobrevivência e conduta de guerra. E para quê? Dizia ele que guerreiros bem formados são os que grafam em sua mente os mandos de sua tribo e em nenhum instante pensa em desordens disciplinares. Seguida a ladainha diária prenunciada, os guerreiros voltavam-se às lições de exercício físico ao solo barrento, tão vermelho e duro como madeira que se forja armas.

Maélia, a velha xamã tribal, filha da jaguatirica, mirava ao fundo, na mata seca que ficava próximo ao campo de treinamento. Pensava consigo mesma, quem é o Capitão para falar aos homens? Nem conhecedor dos mistérios masculinos é. Com que valia transmite aos homens valores morais se nem ao mesmo conhece o seu mais íntimo? Pensava e irritava-se. Preferia não aproximar e nem dialogar com o Capitão, sentia que a troca de informação com o mísero ser não era empática e lhe custaria tempo, e que em tais circunstâncias tempo era ouro. Voltou-se a estrada acidentada que conduzia às moicas¹, ergueu os velhos trapos deslizados sobre as pernas a que chamava manto, e sumiu sem deixar rastro.

Os guerreiros permaneceram em seus exercícios esgotantes no chão, enquanto o Capelão passeava desdenhoso entre eles. Quando lhe vinha a vontade, chutava um ou outro, exigindo-lhe eficiência e rapidez na execução de sua sequência. Esgotados, os guerreiros estavam ali desde o primeiro clarão do sol, e nem estavam perto de serem dispensados; eram liberados de quando em quando, apenas para lubrificar a garganta com a água do rio sujo abaixo da costeira. Após os exercícios físicos, seguiam ainda para a lição de armas. E assim fadariam até o meio do dia, sem previsão de término.

Distribuídos deitados ao solo, alinhavam-se em escala, eram aproximadamente cinquenta fileiras indianas com trinta ocupantes em cada uma delas. Na penúltima fileira, na posição quarta, estava Farbo, um modesto guerreiro, corpo esguio e um porte abaixo da média exigida pelo exército Baruá. Nos últimos anos a tribo tivera muitos nascidos do sexo feminino e poucos meninos, e por agouro eram poucos os destinados ao exército. O rapaz foi um destes, entrou no exército sem ter o porte exigido e não tinha o que chamavam ória² , a glória nata do guerreiro. Estava ali há dois verões e não sabia ainda quanto tempo duraria. Tinha receio que fosse expulso e envergonhasse sua família, tinha certeza que não nascera para a defesa da tribo, mas pesava sobre seus calcanhares o medo de um aborto militar e a falta de prestígio que cairia sobre seu bando.

─ Água! Água! ─ Entoou o Capitão ─ Andem, vão e bebam o que puder, não terão pausa mais tarde. ─ Os guerreiros quase que ritmicamente levantaram e rumaram para a costeira, em busca do único alimento disponível durante o rito de treinamento. Em pouco tempo, as margens do rio avermelhado estava coberta por corpos suados e sedentos. Farbo, não desceu de primeira, esperaria uma parte dos companheiros retornarem para que depois descesse em busca de sua parte suja de água. Longe dos olhos do Capitão, evitava o contato com o restante dos companheiros, porque muitos deles lhe resultavam em agravos ─ no rio ─ lhe afogavam a cabeça ou lhe atiravam barro, fingindo serem excrementos. ─ Não vai descer? ─ Indagou uma voz às suas costas. Virou-se e encontrou os olhos de seu companheiro mais próximo, Arun. ─ Envergonhado, balançou a cabeça, em rejeição. ─ Daqui a pouco desço. ─ Tentou disfarçar o rapaz. ─ Desça comigo, não deixarei eles te tocarem.  ─ Rejeitou mais uma vez e dessa vez nem o olhou. Arun apenas consentiu com a cabeça, virou as costas e desceu.

O treinamento seguiu até início do meio dia. O Capitão entoou mais uma vez o toque de recolher e ordenou aos guerreiros que retornassem às suas moicas, o treinamento estava encerrado. Amanhã haveria mais, por hoje era só. Os guerreiros rumaram pela mesma estrada que há anos traçavam uma rua larga, pouco espaçada, e inteiramente cascalhada. Entre eles, no fim do grupo, Farbo ia a passos lentos, cabisbaixo como de costume. Arun, que ia a frente, cerrou os passos, deixando ser passado pelos demais. Esperou por Farbo, que não fazia questão de encontrá-lo, não hoje. ─ Espere! ─ Ordenou quando o jovem passou ligeiro, fingindo não notá-lo. Quando Farbo parou e mirou-o, solicito-o acanhadamente companhia. Por sua vez, o jovem disse-lhe achar que seria uma má ideia, e tornou a esquivar, ainda de cabeça baixa, tentando driblá-lo. Arun ultrajado quis saber por que o maltrato. ─ Não somos irmãos de guerra, homem-lobo? Farbo timidamente riu-se, confirmou com a cabeça, ─ é o que dizem.

Seguiram sozinhos atrás do bando. Farbo evitava olhá-lo, quando Arun desviava o olhar com um achado qualquer no meio do caminho, ligeiramente o jovem corria-lhe os olhos disfarçadamente. Arun apercebendo-se do desconforto do jovem em falhar-lhe, tentou arrancá-lo palavras. Quis saber da matra, da velha matriarca de Farbo, uma senhora vivida e que cantava sabedoria em cada fio de cabelo-branco nascido. ─ Não tem me oferecido mais da bebedura da matra³,o que houve? ─ Brincou ─ Ela adoentou-se e não tive conhecimento? Farbo desfez a suspeita rapidamente. ─ A matra está boa, só é velha e cansada. ─ Arun disse-lhe admirar a garra da nobre senhora, mesmo envolta em senilidade, ainda se mostrava preciosa e ativa nos ritos da tribo. Farbo confirmou acenando levemente a fronte. Explicou-lhe que a matra já não faz mais a bebedura e tal ofício matrilinear passou a sua mana, que em breve vestiria as vestes da matriarca. Atento o guerreiro o ouviu e, estrategicamente, ofereceu-se a visitar a sua matra. Farbo, pego de surpresa, e sem escudos a lhe sustentar, apenas consentiu transpirando pouca satisfação. Arun firmou a mão no ombro de seu companheiro-irmão e despediu-se.
Quando adentrou à sua moica, Jainé, a mana, estava na fonte lavando pontes. Virou-se brevemente.
─ Água?
─ Sim. ─ Aceitou Farbo ─ Que nada bebera durante o treino. Bebeu tanto que sentiu o estômago inflar.
─ A matra?
─ Deitada.
─ Doente?
─ Não ─ Acalmou-o Jainé ─ Cansada, é a idade.
─ Farás bebedura para a ceia?
─ Não temos ervas, acabou-se anteontem.
─ Maluá ─ disse ─ Pedirei a Maluá, ela deve ter, é certeza.
─ Não pedirás, nessa moica não se faz empréstimos, a matra não aprecia dívidas.
─ Maluá é quase irmã, não se incomodará.
─ A mim incomoda.
─ Oh, mana, é para Arun.
─ Arun? ─ Interessou-se ─ Arun virá?
─ Sim, ceiará conosco, mais tarde, no meio da noite. ─ Explicou ─ Preciso das ervas, Arun aprecia a bebedura da matra.
─ Pois vá e não se demore. ─ Disse ela ─ Punharei a ceia ao fogo.
Farbo a olhou e sorriu-lhe.
─ Ora, vá, manu!
Quando o jovem guerreiro saiu, Jainé riu a si mesma. Ela apreciava o grandalhão Arun, admirava-lhe seu jeito possante.
Ao meio da noite, Jainé tinha dado conta da ceia e já dispusera sobre a mesa a que faziam as refeições. Estava no espaço destinado a sua dormida, de frete a sua rede, sentada sobre um toco minúsculo, pintava-se com a pasta do urucum. Queria estar bonita, pensava ela. Ajeitara o cabelo, punha o colar de dentes de marfim, envolvera o corpo na pele clara da jaguatirica. Farbo entrara no recinto e admiro-a.
─ Ora, mana, a pele da jaguatirica não é para os ritos?
─ Tenho de usá-la, manu, sabe de meus votos.
Farbo riu e deixou-a. Adiantou-se a entrada da moica, cadê Arun, que se demora? Passeava de um canto a outro, impaciente. Mirou ao centro da moica e lá estava a matra, sentada à mesa e bem alinhada, trajando as vestes da matriarca, a que em poucos dias seria destinada a Jainé. Jocoso aproximou-se da velha, a quem tinha afago único. Beijou-lhe a face.
─ A matra sente-se bem?
─ Sim, nasçú, a matra está boa e forte ainda. ─ Acalentou-lhe os cabelos escuros e oleosos. ─ E você guerreiro-lobo? Cadê a ventura? ─ A matra está velha e passa mais tempo deitada, mas a tudo vê.
─ Oh, matra, Farbo é só júbilos.
─ A matra vê até as palavras que não descem sobre seus lábios, nasçú. ─ Não está satisfeito com os deveres militares, não é?
─ Estou matra, Farbo gosta de servir ao exército.
─ Não, não gosta. Farbo é homem compassivo, não é de lutas que se engrandeci.  ─ Nasceu para os ritos, nasçú, esse é o seu agoan.
─ Não é …
─ Psiu! ─ Pôs as mãos nos lábios do jovem ─ Patra, foi patra quem convenceu nasçú ao exército. ─ Matra dará jeito, já tem falado com Grã-Soã.
Farbo tentou mais uma vez falar e a matra o silenciou.
─ Farbo irá servir aos ritos masculinos, o jovem nascera aberto e se formará sacerdote. ─ Farbo não nascera para usar a força, nascera para usar a intuição.
─ Matra …
O silêncio antes formado fora interrompido pelo visitante chegado a entrada da moica. Arun deu um passo a frente e reverenciou a matriarca, fazendo-lhe reverência ainda à porta. Mirou Farbo e deu um sorriso de comprimento.
─ Adentre jovem-lobo. ─ Convidou a matra. ─ Essa moica o recebe.
Arun entrou timidamente e caminhou até a mesa, donde estava a sua espera o jovem Farbo e a matriarca familiar. Moian, a matra, beijou-lhe a face e lhe indicou um dos tocos ao redor da mesa. Antes de sentar-se, Arun apertou o antebraço de Farbo saudando-o, como deve ser o cumprimento entre os lobos-guerreiros.
─ É aprazível está em sua companhia matra, e de seu bando.
─ O afeto é maior de minha parte, Arun. ─ Assentiu a matra ─ Ande, sente, Jainé não se demorará a servir a ceia.
Não demorou e Jainé adentrou ao recinto, bem acentuada e apresentável em seus trajes de sacerdotiza-Soã.
─ Seja bem-vindo a esta moica, jovem-lobo! ─ Saudou-o.
─ Agradecido de sua intenção, senhora ─ Adiantou-se e levantou a receber a bênção da sacerdotisa  ─ A sua bênção, senhora. ─ Curvou-se perante a moça.
Jainé tocou-lhe os ombros e desenhou em sua testa o caran, três vezes seguidas.
─ Seja guiado pelos Antigos, guerreiro-lobo! ─ Finalizou.
Sentados à mesa, Jainé serviu-lhes sopa de carne seca com ervas silvestres e grãos miúdos. Acompanhando o prato principal, deu-lhes a beber a bebedura concentrada e amarga de ervas, distribuindo-a em potes menores. Para os aperitivos de companhia, foram cozidos legumes da terra, cabeças-de-raíz, como chamavam. Antes de provarem a refeição, Jainé convidou-os ao agradecimento a Mãe-Terra pelo alimento concedido naquela noite. No primeiro momento a ceia seguiu em silêncio, como era costume naquela moica, trocavam olhares velados e centraram-se em seus pratos.
─ À Cy, o meu alimento compartilho! ─ Exclamou Jainé e derramou parte da bebedura sobre o chão.
─ À Cy, o alimento compartilhamos! ─ Exclamou primeiro a matra e em seguida os dois jovens.
                   Repentinamente, matra deitou a falar do exército tribal, encarando Arun. Quis saber quais valores o jovem já tinha aprendido e o que carregaria para a vida após a fase de treinamento e se pretendida seguir carreira. Arun, timidamente, respondeu que gostava do exército e que acreditava ser ali o seu futuro, gostava do manejo com as armas e a disciplina que lhe ofereciam.
─ É um trabalho duro, jovem. ─ Disse ela.
─ Sim, é. ─ Concordou.
Continuou a matra a falar de suas pretensões para vida do jovem Farbo, em torná-lo sacerdote e fazê-lo xamã. Arun pareceu surpreso com tal notícia, sabia que o rapaz era desajeitado para o ofício militar, mas não imaginava que estava por vir um possível aborto de carreira.
─ Quando pretende solicitar dispensa? ─ Quis saber Arun, olhando a Farbo.
Farbo apenas balançou a cabeça em resposta. Ele tampouco sabia dos planos da matriarca, a ele era tão novidade como a qualquer outro.
Ao fim da ceia, Arun agradeceu a Jainé o banquete e a matra a hospitalidade. Despediu-se da família e encaminhou-se a porta, parou, e voltou-se a eles novamente.
─ Não me acompanhas até a estrada? ─ Mirou Farbo.
Farbo olhou a matra, que consentiu com um gesto sua ausência.
Os dois jovens saíram a passos lentos, passeando entre as moicas vizinhas. Estavam ao leste, a moica de Arun ficava ao sul. Ainda caminhando passaram por um jamboeiro, donde Arun convidou Farbo a sentar-se sobre os troncos abaixo da árvore. Disse-lhe que queria conversar, não tinha sono naquela noite. Farbo, acanhado, aceitou e sentou-se primeiro.
─ Então Farbo desistirá dos deveres militares? passou a mão levemente sobre seu rosto. ─ E quando pretendias me contar?
─ Mas eu nem sabia, embora Arun sabe que não levo jeito... nem o que fazer.
─ Daremos jeito, encontraremos outro ofício à você, se fará sacerdote, como sugeriu a matra.
─ Não sei se tenho vontade, sou tão desajeitado, não tenho dons, estou tão perdido...
Arun, silenciou pondo os dedos sobre seus lábios.
Farbo estranhou e encarou em silêncio, com olhos baixos.
─ Se estás tão perdido, deixe-me ajuda-lo a encontrar-se... ─ o robusto guerreiro, desajeitado, aproximou-se mais de Farbo, trêmulo e um movimento grosseiro, encostou os seus lábios aos dele.