domingo, 8 de fevereiro de 2015

Antigos



            I

Juntos estarão a evocar,
a energia dos cosmos,
dos velhos deuses,
O poder de agora
e de outros tempos

A energia que vem através de milênios.
Que resisti ao tempo,
e não cai, não verga.
Não balança ao simples toque,
é de agora e de antes mesmo.

Quando dirás sobre o tempo,
falarás sobre eles − os antigos.
Falarás verdades desconhecidas,
dirás sobre os mistérios,
não tocados por reles.

Quando pensares sobre eles,
pensarás dentro de ti,
dentro do teu íntimo,
fora da razão.


E quando já não vires realidade,
é o poder deles que estarás a tocar,
emanando de onde mesmo se duvida,
está em todos e tudo,
é o todo.

Vossos cantos atravessam realidades,
materiais e imateriais,
dentro de universos, paralelos,
e do real palpável.

Achincalham vidas,
anseios, sentimentos, medos,
Detêm cordas pessoais, a controlar.
Tudo estão a segurar, seguram tudo.

O que há de imaginário é real diante deles,
transformam em material, voláteis-coisas,
que não apresentam formas aos olhos,
o abstrato em concreta realidade.

Sustentam o universo,
porque foram que o construiu.
Senhores das florestas, das águas,
da terra e do céu também.

Reinam em tudo aquilo que existe,
a existência é um dom que veio deles,
para existir há necessidade do vosso parecer,
não há existência fora deles.

Nascendo e renascendo eternamente,
dentro dos seus ciclos de vida.
Uma vida, multiplicando-se em duas,
acrescendo outras, indefinidamente.

São o tudo e o nada,
o caos e a destruição,
e também o criação e a renovação,
o acender e o apagar do pavio,
a centelha e o fim de vida.





quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O jardim das folhas sagradas

Vinha caminhando levemente pela estrada acidentada, cabisbaixa, ainda um pouco confusa, sem muita noção de seu destino. Durante o percurso, avistou alguns caminhantes que iam e voltavam dos povoados vizinhos. Sofia residia em um aglomerado de povoados, que juntos formavam uma grande extensão residencial, quase um país; distante de outros países, inclusive. Passara toda a vida nesse ambiente, pouco conhecia dos costumes de outros povos, e o pouco contato que tivera com o mundo lá fora, foram situações de extrema urgência. Fora criada pela avó, não conhecia os pais. Bem verdade, soubera brevemente da existência da mãe, mas quando chegou aos seus ouvidos notícias referentes à esta, ela já não estava mais interessada em conhecê-la. Tomara por mãe a própria avó, como ela mesma dizia, era a imagem que conhecera de instrutora e criadora; talvez por esse motivo, julgou nunca ser necessário o contato com sua mãe de sangue.
            Os costumes a que Sofia estava acostumada eram milenares, advindos dos primeiros povos, como dizia sua avó e demais anciões de seu povoado. Estes costumes eram ritos e comportamentos que faziam parte do dia a dia de todos do povoado de Banchê, onde a jovem nascera. Estes, por sua vez, perpassavam diversas áreas da vida humana, desde o cuidado com a alimentação diária, o cuidado com a mente, a criação de animais e até mesmo a ornamentação da casa onde se vivia. Os banchenianos são um povo costumeiro e de comportamentos tradicionais, não esquecem e provavelmente jamais esquecerão suas raízes; ainda nos dias atuais fazem e continuam a fazer muito do que os primeiros povos faziam. Acreditam que mantendo esses laços ancestrais, mantêm-se um bom um espírito e, por consequência, passam a ser humanos melhores, podem perceber melhor as coisas pequenas da vida, e entender melhor o seu contato com a natureza, e as relações com os outros povos também serão melhores.
            Deixemos de falar do povo-origem de Sofia, e falemos da própria. A jovem bancheniana já estava perto de completar 16 anos, para poucos essa é uma idade com significado, mas para o povo de Banchê, certamente o é. Nos costumes de Banchê, as donzelas podem optar entre dois destinos: casarem-se ou servir a algum templo local, como sacerdotisa dos antigos mistérios. Quando se opta pelo primeiro caminho, as jovens tomam como marido alguns dos pretendentes que a família lhes põe à disposição. Os Bachenianos não costumam ser impositivos e não são favoráveis ao regime autoritário e não-irrevogável; pelo contrário, entre os povoados do País de Inverno, são, talvez, os mais flexíveis e libertários dentro dos costumes tradicionais. Jovens sempre têm escolhas ─ seja do sexo masculino ou feminino ─ para bem destinarem o rumo de suas vidas. Talvez, o leque de escolhas seja curto ─ sim, é bem verdade. No entanto, para Banchê, que é um dos povoados de menor extensão, eles até são bem desenvolvidos civilmente.
            Sofia é uma dessas donzelas que pôde escolher, e escolheu servir aos Ieruás, é assim que os Banchenianos chamam os antigos deuses, a quem prestam culto desde os primórdios. Não que a jovem Bancheniana julgue-se apta em totalidade a esse caminho, mas sente que é diferente desde cedo, e que também não nascera para constituir matrimônio e ser guardiã de um lar. Em outras palavras, nascera sensível em relação às demais jovens, suas habilidades em lidar e ser compreensível a outrem, fez-lhe encontrar nesse caminho uma possibilidade de vida compatível com seus anseios. Desde moça, sempre sentiu empatia para com os demais seres vivos, encontrava no simples gesto de ajudar o outro uma forma de se sentir mais conectada e próxima dos cosmos e dos deuses.
            Foi a avó quem lhe disse que talvez o seu caminho estivesse diretamente ligado ao bem-estar do outro, nas habilidades de propiciar o conforto necessário a quem lhe procurasse. E, também, desde que se recorda, sempre foi muito devota e religiosa, mesmo alternando momentos de fé fervorosa e balanços em sua crença. Visto por um prisma diferente, Sofia, julgara que os abalos em seu caminho devocional eram formas de manter-se firme em suas convicções e reforçar ainda mais o seu poder de crença.
            Esses eram um dos motivos pelo qual ela fazia o trajeto por essa estrada, nesse mesmo instante, estava indo em busca de um sonho de menina ─ tornar-se sacerdotisa e dedicar os seus dias a servir aos antigos deuses, como residente de um dos Templos Sagrados do País de Inverno. Sabia a importância desse dia em sua vida, afinal, esperou anos para que ele finalmente chegasse. Estava insegura, mesmo tendo confiança em seus talentos natos, a que julgara serem pré-requisitos para investidura no ofício. Na mesma estrada, vira muitas outras meninas tomando o mesmo caminho, e em parecida situação, sozinhas e com uma imensa bolsa sobre as costas. Estes eram alguns sinais de que o caminho seria longo até chegar ao Templo-mãe, e também que os dias de testes e provações seriam longos. Reservara em sua carga, roupas, comidas, livros, e alguns objetos pessoais e de higiene. E supunha que as outras moças também tivessem feito.
            Já chegando a determinado ponto da estrada, começaram a se aglomerar as moças: a estrada se fazia mais estreita, e a partir dali, era tudo muito deserto e com poucos passantes à vista. A necessidade de permanecerem seguras e longe de qualquer infortúnio, faziam que aproximassem e tomassem amizades, rapidamente. Sofia permaneceu sozinha, sempre fora em demasiado tímida e reservada, tinha dificuldade ou não sabia mesmo por onde começar uma relação de amizade.
            Com a cabeça baixa, não pôde ver, mas seus ouvidos foram ligeiros em captar as pegadas se aproximando. Um jovem de estatura mais baixa a sua, e mais corpulenta aproximou-se dela. Sorriu-lhe e desviou rapidamente o olhar, Janice também o fez.
            ─ Perdoe-me, senhora, será que poderia...sabe, não é bom... ─ disse timidamente a jovem, recém-chegada.
            ─ Claro, pode sim, fico satisfeita com a companhia ─ Sofia respondeu institivamente.
            ─ Obrigada, senhora. ─ respondeu agradecida a moça.
            ─ Sofia...chamo-me Sofia. ─ respondeu ela ─ Reserve este tratamento às Senhoras do Templo, afinal, sou tão jovem quanto você. ─ sorriu, por fim.
            ─ Perdão...quer dizer...tudo bem! ─ respondeu a jovem robusta, meio atrapalhada ─ Sou Laliana, chama-me apenas de Lia, se quiser, meus pais me chama assim.
            ─ Tudo bem, Lia. Um prazer conhecê-la.
            ─ Sou grata do mesmo modo.
            Um barulho fez com que as moças parassem a caminhada e fizessem um aglomerado à frente. Janice pôs-se na ponta dos pés e tentou ver por cima das cabeças. Nada. Não conseguia ver nada. Ouvia uma voz fina, dizendo algo, não conseguia compreender. Pegou no braço e Lia e puxou rumo à frente.
            ─ Venha! ─ disse ela. E a jovem não hesitou.  – Precisamos descobrir o que está acontecendo.
[Continua...]


            

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

A senhora dos animais

Ao fim da tarde, voltando para sua tribo, Ibiri atravessou a mata, para chegar a oca onde morava. Ibiri era menino índio, da pele vermelha, filho dos Tapajós, do Amazonas. No meio do caminho, Ibiri encontrou vários animais desacordados, deitados sobre o chão lamacento. O garoto aproximou-se e viu que os animais estavam mortos; sentiu muita pena dos pobres animais e chorou. Ouviu ao longe um barulho estranho, e com medo se escondeu.
  Ah, aí estão vocês! – disse um velho, de cabelos brancos e gorducho, e que tinha na mão uma espingarda e um chapéu redondo no topo da cabeça. – Terei um jantar farto essa noite e nos próximos dia também. – finalizou o velho.
Enquanto o caçador ia pegando os pobres animais, um a um, e pondo dentro de um grande saco de pano. Ao longe se ouviu um barulho estranho, mais uma vez, mas agora era o vento que vinha assoviando.
O caçador tremeu e largou o saco de pano no chão. O menino índio, ainda escondido, tapou os olhos com as mãos e ficou espiando entre os dedos.
  Quem fere meus filhos? Quem fere? – Raivosa, perguntou Hamãy, a deusa guarani dos animas; que acabara de chegar, trazida pelos ventos.
  Não, senhora, ninguém os fere!. Respondeu o caçador, tremendo e olhando para baixo, com medo de encarar a senhora dos animais.
  O que carrega nesse saco? O que carrega? – Perguntou ela.
  São frutas, minha senhora, são frutas... para comer na janta. – Respondeu o caçador.
  Deixe Hamãy ver, deixe. – Exigiu a deusa. O caçador choramingou baixo.
  Ande, seu caçador! Mostre-me o que tem dentro do saco de pano! Exigiu a entidade.
O caçador abaixou, ainda tremendo, e abriu o saco de pano. Tirou um a um os animaizinhos mortos e depositou sobre o chão.
Hamãy,  a  senhora  dos  animais,  ficou  furiosa,   suspirou   alto   e   deu  uma cambalhota no ar. Chegou perto do caçador e soprou nele uma fumaça cinzenta.

  Malvado caçador, você não merece viver como gente, é cruel e sem coração. Não podia ter ferido tantos animais assim. É extremamente necessário que eu faça o que farei!
Imediatamente, com o sopro da deusa, o caçador foi transformado em árvore, de caule torcido e folhas duras. Virou parente das plantas amazônicas, e agora passara a viver no reino vegetal.
O garoto, do outro lado da mata, choramingou baixo. Hamãy, a senhora dos animais, tem ouvidos bons, é, ela tem. Foi até o local.
   Quem é que se esconde no fundo da mata? Quem é que se esconde? – Perguntou a deusa dos animais.
   É Ibiri, filho dos Tapajós, o povo indígena dos baixos rios Madeira. – Respondeu o menino índio.
  E por que chora, menino vermelho?
  Os animais, o caçador matou os animais de nossas matas.
   Não se preocupe, menino vermelho, Hamãy conhece da arte mágica e é curandeira de animais.
Hamãy voou alto, mais uma vez, deu uma nova cambalhota no ar, e soprou sobre os animais. E, instantaneamente, os animais que estavam mortos voltaram a viver novamente.
  Obrigado, senhora dos animais, por ter salvado meus irmãos.
  Não agradeça, menino vermelho. – Hamãy mexeu dentro de seus gigantes cabelos e tirou algo lá de dentro e disse: − Pegue, essa é uma pedra encantada. Quando vê alguém maltratando os animais, esfregue a pedra, que virei na mesma hora.
Terminou dizendo:
  Agora é extremamente necessário que eu vá-me embora. Preciso salvar e curar outros animais, em outros locais. – Despediu-se a deusa guarani dos animais.
Dito isso, o menino ouviu ao longe o assovio do vento novamente, o vento veio e com ele Hamãy desapareceu.

Ibiri, o menino índio, da pele vermelha, voltou a sua tribo, com os seus irmãos animais, ao lado. Atravessou a mata feliz, assoviando e sorridente. Levava a pedra encantada em uma das mãos, apertando-a com força, porque não queria jamais

perdê-la. Agora ele e a deusa dos animais tinham um elo. Ele era o guardião dos animais das matas e devia avisá-la sempre de qualquer maltrato a eles.