domingo, 28 de novembro de 2010

A pupila do sacerdote ancião


        ─ Vamos, acorde! ─ disse o velho, mirando-a de cima, sobre a cama de pedra; onde ainda permanecia deitada.
─ Não! Preciso tentar mais uma vez ─ respondeu a garota, despertando-se ─, deixe-me tentar só mais uma vez?
─ Não, minha garotinha, por hoje já é o bastante – concluiu ele ─, ainda terá mais oportunidades de tentar.
─ Por favor, vovô, só mais uma vez.
O velho abriu um longo sorriso amarelo e passou a mão sobre a cabeça da garota.
─ Demitria, sabe bem quantas oportunidades diárias lhe são dadas para a tentativa de realizar o feito. Essa foi a última; apenas não foi dessa vez, mas, como disse, ainda terá tantas outras.
─ Mas...mas eu já estava tão perto de encontrá-lo, vovô ─ retrucou a garota.
O velho sorriu novamente.
─ E como ele era? Quantas patas? Tinha asas?
─ Acho que era um felino.
Tal declaração instigou-o.
─ Ah...bem, deixe-me ver ─ disse ele, e retirou do bolso de sua túnica uma pequena ampulheta, e mirou-a com exatidão. ─ É, pequena aspirante, acredito que ainda temos mais alguns minutos.
O feiticeiro pegou o tambor ritualístico que deixara encostado sobre a cama de pedra, instantes antes.
─ Vamos, deite-se e feche os olhos. ─ começou a tocá-lo pausadamente; e a vibração ritmada da canção levou novamente a garota a adormecer em sono profundo.
Demitria, a pequena garota, estava em êxtase e sentia seu corpo atravessando uma nova dimensão. Aos poucos, despertou e viu-se deitada sobre a entrada de uma caverna escura, rodeada por um grande penhasco. Poderia não entrar se quisesse, mas não o faria. Ela sabia bem o porquê de está ali. Começou a adentrar a caverna aos poucos; a caverna tinha a mesma aparência de sempre, escura e misteriosamente silenciosa. Seguiu adiante, já não tinha mais medo, estivera ali tantas vezes que nem era mais tomada pelo receio. Depois de uma pequena caminhada pelo chão úmido e escorregadio que ambientava a superfície do local. Deparou-se com o longo corredor que dava acesso ao centro da caverna, onde estaria localizada a cúpula. Pronto. Estava satisfeita, sabia que seria questão de minutos para atravessá-lo e chegar ao local desejado.
            Continuou seguindo pelo corredor. Ouviu em seguida um barulho, um som diferente, tinha a impressão que já tinha ouvido algo parecido. Seja lá o que fosse o barulho, ela notou que, aos poucos, ele aproximava-se mais. Ergueu a cabeça e mirou o teto; lá estava a fonte do barulho - um grande morcego de olhos avermelhados. Com muita inocência, pensou ela, pode ser ele o que procurava. Pensou que poderia tê-la poupado do trabalho de procurá-lo. E, inocentemente, aproximou-se.
─ Oi, senhor morcego. Tudo bem?
            O morcego parecia não muito amigável; continuou mirando-a como um olhar nada convidativo.
            A garota continuou.
            ─ O senh...senhor...seria, por um acaso, o meu animal... ─ antes mesmo que ela terminasse a frase; o morcego cortou o ar, velozmente, em sua direção.
           Demitria, a pupila do sacerdote ancião; não por medo, mais por impulso mesmo, disparou em uma rápida corrida. E o morcego, nada-amigável, continuou a segui-la voando em direção ao topo de sua cabeça. A garota após correr bastante, alcançou o que parecia ser a cúpula da caverna, onde estava um enorme círculo de pedra e onde deveriam estar os animais à sua espera. Mas, percorreu com os olhos a escada rochosa que dava acesso a parte baixa da cúpula, e não enxergou nenhum deles no perímetro do círculo. E olhou para trás e lá estava ele, o morcego vindo em sua direção. Desesperada, tentou descer rapidamente a escada forjada em grandes blocos de rochas; mas, logo no primeiro degrau, tropeçou e despencou.
         Quando despertou, sua cabeça doía e parecia meio desnorteada. Olhou ao redor e não viu nada e nem ninguém a sua vista. Notou que tinha caído justamente no centro da cúpula, dentro do círculo de pedras. Tomada pela falta de discernimento causado pela situação, não percebera que o morcego de olhos avermelhados estava pousado a poucos metros dali, na parede da caverna. Quando olhou atrás e o percebeu, tentou novamente correr, mas antes que o fizesse. Por detrás da escuridão que encobria a cúpula, saltou, violentamente, um lince em sua direção. A garota, temerosamente, recuou. O grande morcego não se intimidou com a presença do lince e apresentou-se para o confronto.
            O lince continuou aproximando-se do grande morcego e soltou um rugido estrondoso afugentado-o. O morcego pareceu, instantaneamente, mudar de comportamento e desistiu de caçar a garota. Ela, ainda medrosa, virou-se e mirou o felino e investiu mais uma vez.
            ─ Desculpe-me, senhor lince, por um acaso, seria você o meu animal guardião? Perguntou insegura.
             O grande felino a ignorou e deu de costas; seguiu em direção ao circulo de pedras que contornava todo o chão da cúpula. Saltou em seguida, precisamente, sobre uma das pedras e lá permaneceu imóvel. E para a surpresa da garota, o morcego também o fez, pousou em uma delas e permanecera também imóvel. Em um acontecimento rápido, todas as tochas que estavam em volta do circulo de pedra, e que até então estavam apagadas, ascenderam-se de forma misteriosa. Através de uma série de movimentos rápidos, saltando ou voando, vários animais surgiram e tomaram seus postos sobre as grandes pedras.
            Pronto. Era aquela a ocasião tão esperada pela garota. Era Cerimônia de Apresentação do Animal Totem aos Aspirantes em Magia. Demitria sabia bem como proceder, posicionou-se ao centro do grande círculo de pedras e mirou os diversos animais presentes: águia, alce, búfalo, castor, cisne, coelho, coruja, cobra, gaivota, gato, leão, lobo, onça, raposa, texugo, urso e vários outros. Ainda insegura, dirigiu-se àquele que seria o seu primeiro palpite. Por incrível que pareça, a garota tinha ido de encontro ao morcego feroz de olhos avermelhados.
            ─ Seu morcego, você seria...assim...meu animal totem?
            O morcego calado estava; calado permaneceu.
            Demitria poderia ter ficado decepcionada, se não fosse pelo fato de que, não se sentiria nada protegida por um animal guardião que horas antes havia tentado atacá-la. Sentiu um grande alívio pela reposta que recebera.
            Aproximou-se do próximo.
            ─ Seu alce, o senhor é o meu animal guardião?
 E do próximo.
─ Dona águia, a senhora é a minha guardiã?
 E de mais um.
             ─ Seu texugo, o senhor é meu animal totem?
             E nada.
            Tinha percorrido quase todo o círculo. E por hora, chegou ao grande felino que instantes antes a havia protegido do não-amigável morcego. Encarando-o, meio temerosa, aproximou-se vagarosamente.
            ─ Seu lince, o senhor seria, por um acaso, o meu animal guardião?
            Fez-se um breve silêncio. O lince que ostentava um semblante indiferente; mostrou, aos poucos, um cordial sorriso e balançou o focinho positivamente. E em seguida, todos os animais fizeram reverência em sua honra. Ele pulou na frente da garota; aproximou-se, e inclinou o tronco. Ofertou-lhe montaria em suas costas. A garota, embora, ainda sentisse certo receio pelo convite; montou-o. Passou a mão devagar sobre sua cabeça e o abraçou em seguida. O lince percorreu velozmente todo interior da caverna e seguiu em marcha ligeira na direção do corredor que levava a saída.
Já na saída, Demitria desmontou do lombo do lince e ficou em dúvida sobre o que faria a partir dali. E, de forma espontânea, sabendo que ele a entendia, adiantou-se.
            ─ O que faço agora?
            O felino ergueu-se sobre as duas patas traseiras e apontou com uma das dianteiras o penhasco que estava à frente. A garota não entendeu a mensagem e aproximou-se das margens do penhasco. Olhou para baixo e subiu rapidamente a cabeça. Não conseguiu enxergar nada lá embaixo, além de um emaranhado de nuvens e uma rala neblina que se estendia por uma imensidão que parecia não ter fim. Tentou mais uma vez.
            ─ Não estou entendendo. ─ coçou a cabeça ─ o que devo fazer?
            O lince tornou a apontar para o local. A garota apavorou-se no mesmo instante. ─ Não, não pode ser o que estou imaginando ─ pensou ela. ─, tudo, menos isso! ─ continuou implorando em pensamento.
            ─ Você vai me levar lá em baixo? ─ tentou ela.
 O lince balançou a cabeça negativamente.
            ─ Eu devo ir sozinha?
Agora, ele balançou a cabeça positivamente.
            Apavorou-se novamente. ─ Não, espere aí! ─ e voltou a olhar o fundo do penhasco ─, você não está esperando que eu...
             Antes que terminasse de falar; o lince saltou em sua direção, e a empurrou com pelas costas com suas patas dianteiras. E bem na beirada do penhasco, brecou com suas patas traseiras para não cair junto. E despediu-se com um sorriso desdenhoso. A garota despencou, velozmente, pela garganta do penhasco. Que, aparentemente, se perdia em uma imensidão infinita. Gritou em desespero em sua descida, embora, de nada adiantasse; seus gritos se perderam em meio ao vão. Demitira sentia seu corpo tocando as nuvens e a neblina gélida. Novamente entrou em êxtase e permaneceu inconsciente.
             ─ Demetria? ─ sacudiu-lhe os ombros ─ vamos, mocinha! Isso! Retorne devagar. ─ dizia o velho feiticeiro, passando a mão sobre seu rosto.
            Demitria estava agora no mesmo local de onde partira; deitada sobre a grande mesa de pedra. Sendo monitorada, atentamente, pelo seu avô.
            Ela abriu os olhos devagar. E a claridade do sol de fim de tarde pareceu incomodá-la. Tornou a fechá-los.
            ─ Vovô?...vovô? ─ chamou, chorosa.
            ─ Estou aqui...estou bem ao seu lado.
            ─ Onde estou?
            ─ De volta às Montanhas Prateadas, em Osmord. ─ respondeu ele.
            ─ O que aconteceu com o...
            ─ O lince? Não veio.
            ─ O senhor o viu?! ─ Viu que ele me...
            ─ Não, não vi, mas pude senti-lo ─ interrompeu-a.
            ─ Vovô, eu o encontrei! ECONTREI! ─ gritou exaltada e pulou sobre o colo do avô.
            Ele a abraçou carinhosamente. ─ Sim, mocinha; tem razão, o encontrou. Parabéns! Bom trabalho!
            ─ E agora, vovô? ─ perguntou curiosa.
            ─ Agora? ─ abriu o longo sorriso amarelado – Agora nós precisamos nos apressar se quisermos chegar à Cardamomo antes do anoitecer. ─ disse ele, mirando o céu, onde o sol estava muito baixo, quase se retirando.
            Preparam partida e seguiram descendo as colinas.

sábado, 27 de novembro de 2010

O guerreiro dos pés furados


Não sabia que ela seria a sua donzela. Não, não sabia. O destino resolveu cruzar suas vidas; convidou-os para dançar a dança espiral do êxtase. Era o guerreiro destemido, que de todos os venenos tinha provado e de nada tinha medo. Todavia não era um rapaz afortunado, o destino resolveu brincar com a sua sorte. Não saberia ele o momento em que as águas desceriam os rios. A insuficência estaria presa em sua garganta e não o deixaria proferir o que sentia.
Em seu caminho a Esfinge fora postada, ela não o deixaria prosseguir, sem antes decifrá-la. Ele detinha o segredo esculpido em suas entranhas, mas o receio em fraquejar o fazia balbuciar. Bem sabia que não tinha uma nova carta, precisava ser ágil. Ao fim, ele conseguiria atravessar a muralha, mas o destino a rosa negra lhe reservara.
Teve o direito de tocar a donzela, de agraciá-la. Contudo o destino não o tinha como companheiro; reservou-lhe a rainha proibida para acorrentar seu coração. Essa união não era pura, o que residia em suas veias também morava nas dela, eram unidos pela mesma carne. Das entranhas dela, ele veio, ele era o seu herdeiro.
Renhido, os seus olhos deserdou. Queria estar cego para não enxergar o infortúnio que cometera. Não deveria ter dormindo sobre os seios que o amamentara; essa foi a sua maior agrura: morrer sem a imagem de sua amada novamente reencontrar. 

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Renovo, de novo

  

     Hoje escreveria um novo poema, nele faria um novo amanhã. Mudaria o rumo das coisas. Não deixaria que seus desejos se perdessem em meio ao vão. Tentaria não cometer os mesmos erros. Foi-lhe dada uma nova chance, poderia tentar de novo. Mesmo perdendo, sentiria prazer na perda, porque perder nunca é o inferno, perder é a renuncia daquilo que já não se quer, daquilo que jamais se quis, daquilo que talvez nunca se tenha tido, é o entregar ao destino tudo que já não cabe. Devolver a vida o que já não encaixa na cápsula pessoal do ser, desfazer o que outro já não importa, descortinar o não-visto, o imperceptível, o distante. Mesmo que tentasse mostrar o que não queria, correria o risco, o desejo de não ter mais o que não mais esperava, a vontade de já não encontrar em anseios aquilo que já não mais se almeja. Devolver de volta tudo estagnado, parado aos cantos, que ocupa um espaço não permitido, que faz com que a mente não pare de pensar, de se mostrar alheio a qualquer preocupação semelhante. A cada palavra escrita um novo começo, a cada novo começo um tropeço. Tropeçar nem sempre é desequilibrar, é não ter força o suficiente para se manter firme na base da vida. O equilíbrio não é de um todo vital para o ritmo de tudo.
Não escreveria mais em linhas tortas o que tinha para dizer; já não fazia mais sentido não se fazer entender. O dito pelo não dito, palavras bem desenhadas vazias de sentido algum, o que sai pela boca nem sempre é o expressar do corpo. Corpo e mente não expressam em sintonia desejo equivalente, o agir distante do pronunciar, palavra toca, gesto derruba. Tudo feito, tudo falado, ambos desfeitos. Iria expressar tudo que sentia, sentia que aquele era o momento. A cada imagem formada, a cada recorte captado pela lente dos olhos da alma, o que se impregna em vestes, as cores dos tecidos trançados juntos outrora. De novo o que se ver está distante, distante dos olhos, distante da lente, distante do coração. Acreditava que através daquelas linhas tudo voltaria aos seus devidos lugares. Precisava juntar tudo o que havia sido perdido e conduzi-los novamente ao seio. Das vezes que apanhava as areias soltas ao longo do caminho, dos anseios perdidos, do medo indo e vindo, daquilo que jogou fora e não mais buscou. Onde não mais voltaria ao manejo das mãos, tudo era voltas e voltas, contornando soluções em torno de situações indesejadas, de perdidos pensamentos reinantes em solos frágeis e instáveis.
Faria que seguissem a canção, já não tentaria mais mudar o ritmo. Precisava dizer que já não fazia sentido todos àqueles escudos que foram projetados. Uma vez lançado, não impede de atingir o alvo, tudo já fora, a quem pegar não há retorno, é um acerto, acertando contas, dilacerando entranhas, rompendo estruturas internas, é agora o fim, o dispensar dos que já estavam soltos e desfeitos, não mais agora, no desfalque, já não se alinha mais adiante, tudo que era retalhado no horizonte, não de agora, de longe. Entrando e saindo, percorrendo escadas tortas, degraus escorregadiços, piso inconstantes, sentimentos caídos, lágrimas derramadas, rastros perdidos, agora e sempre, uma vez chegando, outra vez partindo. Tudo retornando, se embrulhando em folhas secas, o inverno chegando, o café exalando cheiro, a lareira torrando lenhas, carvão, quente, prazer, tentação, medo, suor, receio, ritmo. Encontrado o que de dentro ansiava, já era tarde, todos distantes, roupas ao canto, a não preocupação de tudo, antes era só beijos, acalentos, carinhos, toques, arranhados, arranhando coração, arranhando o caminho.
Eles já não precisavam mais separá-los. Mostrá-lo-ia como derrubá-los para acessá-lo. Acredite, não seria difícil, apenas precisaria ser perspicaz. Precisava mostrá-lo como andar por aquela ponte; ela ligava seu ego a ele. Andando ao ritmo dos distantes, do que não se busca, desfazendo leitos, mágoas secando, recolhendo sofrimentos, buscando ao longe o agora, não tenhas medo, não é de mentira. Tudo em realidade se faz, fazendo o caminho novamente, buscando o que desfizera, apagando as letras na areia, não tenhas medo, não é o medo a porta para o sofrimento, é algo maior. Precisava ensiná-lo a ter malícia; não precisava ter todo o equilíbrio do mundo. Deveria ser centrado e conseguiria atravessá-la. Ela poderia tremer, não devia esquecer-se. Mas se aquele era o seu objetivo, não deveria deixar-se intimidar. Tens a espada a frente, com ela a busca pelo afrontar desejo é mais fácil, mostre aos monstros-medos, rompendo os escudos-raívas, já foi, já era. Não trago junto o que não queres, pego de tormento e afogo em sentimentos, tenho teus olhos, teus pensamentos. Atravessar os fios da consciência, caminhando sozinho, devorando a razão, engolindo os gelos da alma, sofrendo a perda, cuspindo tristezas. Já não vejo perto, meus olhos ofuscados pela luz de tua racionalidade, lágrimas rasgando o que não tenho, ferindo dentro, revelando o que não vejo. Atravessará todo, mas fique agora desse jeito, a ponte balança mais não cai, não olhe para baixo, não verás, não enxergará.
Precisava ensiná-lo a andar naquela floresta escura de anseios; não podia ter receio. Se fosse honroso e agisse com cautela; todas as criaturas do ego poderiam vir a baixo. Teria que ter em mente como superá-las, era fácil, precisava saber ser, sabe ousar. Esse era o caminho, podia ir quando desejasse. Podia acessá-lo se tivesse vontade, só não tinha a garantia que iria gostar. Não sabia se o seu eu lhe caberia. Porque todos os meus gostos mofaram, apodreceram sobre a toalha da vida, agora o que tenho é medos, desejos estranhos, não os busco, acesso-os. E quando te vejo, tento uma busca, tento e frustro-me. É assim que vivo, vivo o agora e não mais o amanhã. Olhando agora para aquele canto deverá subir bem mais, deixar as malhas nas pedras, sente frente ao mar. Ver? Não é agora, é mais além, continue andando, não pare a frente, continue atravessando as ondas, olhe o mar, é salgado. A água é suja e salgada, também sou oposto, tenho lados diferentes, sou assim, uma ora puro sal, outrora muito doce. Não vivo estes anseios de forma linear, não estou agora, não estou nunca. Aproxime-se da casa de palha, lá guardei lembranças, de todos os momentos, de todos os símbolos conscientes, formas abstratas, pinturas antigas, abjetos presentes. Cavando fundo acessará, mais abaixo está o mais íntimo, mais abaixo o que não posso revelar, tens certeza que queres? Continue a buscar mais ao fundo, lama, mal-cheiro, desprazer, desilusões, angústias, agora é o momento, pare ou siga. Tudo é isso, não é nada, não tenho muito, pouco ofereço. É isso.
Quando o fim estiver próximo todo esse ritmo se desfaz, as coisas serão descartas, na busca não se encontra o que nunca esteve lá, o que se ganha não é o que se merece, é o que a vida reserva. Todas as cascas foram arrancadas cuidadosamente, retirando as maiores, depois a menores, devagar, para não machucar, o que está abaixo do casulo se revela com calma, não é bem-vindo a todos os olhos. A essência que banha a mais íntima da peles está coberta de pragas-sensações difíceis, não olhe, não permitirei que veja, já não pode suportar, vá embora! Solte-me, rompa com isso, solte as cordas, devolve minhas linhas, desfaça meu ponto-cruz, jogue meus antídotos fora, não os beba mais. Quando viraste, devo recolher-me, é agora, vai indo e vejo suas costas, continua andando, arrastando de volta ao casulo. De volta ao abrigo, forte sou. Não o tenho, mais me tenho, e tenho tudo.

Aquarela

        No quadro havia um retrato; no retrato havia uma imagem. Imagem que não podia ser tocada, que não pode ser sentida, que não pode ser vivida. Lembrava daquele recorte; a tinta que estava sobre ele tinha jorrado de suas mãos; todos aqueles detalhes foram esculpidos pelos seus desejos. Estaria a vontade para mergulhar naquele emaranhado de cores; cada tom daquela tela refletia momentos que por eles foram vividos. Mergulharia naquela aquarela junto a ela; daria-o essa oportunidade de sentir novamente aquele dia. Nadaria sobre aquela nostalgia: Ela era a vida, vivida, tida, consumida, sofrida, perdida.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Tocando no medo dos inocentes

               É a fúria dos montes, que vem e se esconde. Sabe-se bem de onde vem; vem do alto das montanhas. Porque é do alto que se faz o medo, medo esse que atormenta, que desfalece a carne humana; que deixa a carne trêmula. Porque sentir o medo na carne é doloroso. É como o guerreiro a quem enxerga o seu inimigo ao longe – a besta – e que dela tem medo. Mas, mal sabe ele que quem mais têm medo é a própria besta – essa, participa do espetáculo sem convite. Não, ela não foi convidada. É o seu bode expiratório, que engrandece seu ego.
             A besta tem medo, mas não demonstra, pois seu medo esconde-se por detrás do seu instinto. Não pode temer, ela não é fraca. Fraco é o homem! É ele quem precisa de outrem para inflar o airbag do seu ego. A besta – oh, pobre besta  – participa do circo porque não lhe foi dado direito à toalha branca. E ele tem prazer em sentir a sua carne trêmula. Ela tem tal característica, vacilante, transpira ao oponente seu medo. E ele faz disso o passaporte para o paraíso. É o momento em que conta as pepitas de ouro que trouxera da mina, e assim, sente-se grande. E a besta, mais uma vez, caminha sobre o campo da vaidade do homem: é só mais um objeto.

Convite para o novo


               Aceitou o cálice com satisfação. Aceitou. Aceitou porque era a passagem para aquela nova dimensão. Agora era bem-vindo ao novo mundo. Apenas não podia ter a certeza, porque ali ela podia não funcionar. Não devia andar ali como andaras no passado. Lá o passado não existia nem nunca havia existido. Aquela era a construção para o novo, tudo devia ser projetado, e quando não servisse mais, devia ser descartado.
            Se quisesse, eles o conduziria; lhe mostrariam como ali o sol nascia, as flores cresciam e os sentimentos enalteciam. Não lhe diriam que tudo era bonito, pois lá não havia o bonito. Tudo era reflexo do que os olhos podiam realmente enxergar. Não podia ordenar que as coisas seguissem sua vontade, sua vontade lá de nada valia, enquanto estivesse presa à ufania.
            Se quisesse, deixariam-no ir. Não podiam deixá-lo sentir-se preso, não deviam lhe impor suas vaidades. Podia ir quando quisesse; e lá podia novamente retornar. E, enquanto não voltasse, o estariam a esperar.

Foram-se

Abriu os olhos e enxergou . Tudo aquilo ali eram partes suas, que um dia lhe foram levadas. Não, não podia tê-las novamente, já não eram suas. Todas caminharam junto a ele um dia, eram suas companheiras; tinha-as presas ao que realmente era. Hora compunham sua personalidade, outrora sua essência. Gostava de tê-las próximas a ele, tinha por elas um sentimento maternal; interessava-lhe a ideia tê-las debaixo de suas asas. É, eram seus filhotes. Agora já não sabia onde encontrá-las. Foram-se, apenas foram-se. E ficou o vazio de um dia tê-las, e esse sentimento o corroia. Sentimento carrasco. Sentia-se preso a guilhotina; tinha a sensação que a qualquer momento perderia a cabeça. E assim, se daria a sua consumação.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

O que há na criação é do criador

Sabe o que está por detrás das cortinas. Ele tem o roteiro da peça. Cada fala, cada gesto, cada expressão, são coordenados pelos seus atos. Todas as vestes são costuradas pelos pontos tecidos de suas mãos, é dele o último nó, as linhas, os fios, trançados fielmente entre seus dedos. Mãos que fazem roteiros, comédias, tragédias, dramas. À parte do destino e tão dono dele.  Tudo seu, todos, o todo, de um tudo. Gigante em fazeres, hábil costureiro de vidas, pescador maestro, em sua rede fisga os melhores. Carpinteiro por excelência, através de suas ferramentas vem ao mundo as melhores esculturas, corta os defeitos, arranca pontas, serra o lado estragado, aprega os anexos, lixa a pele grosseira, pinta com o melhor tom, por fim, deita uma camada fina de verniz, para proteger dos tempo ruins. Escultor das melhores peças, aperta, comprimi, tira o excesso, molda dali, daqui, molha, modela, leva à queima. Pronta para o uso, uma nova existência, um novo ser, uma nova razão. Mais um aqui, mais um vindo, outro indo, um caindo, outro nascendo, seguindo o ritmo, novos e velhos, a roda girando, nascendo, vivendo, morrendo.
É dono daquilo, sabe tudo o que acontece. Afinal, os atos são vistos pelos seus olhos, só ele pode contar a verdadeira história. Se algum dia se calar, quem saberá? Uma história pode ser contada por muitos, mas só o dono dela é quem dentem a verdade. Como dono de tudo aquilo, sabe que todos os atos são planejados pelos roteiros que ele mesmo escreve, os perfis são todos traçados pelo que ele acha ideal. Forja falas, constrói diálogos, planeja conversas, tira uma palavra daqui, põe ali, não aqui, mais ao meio, espera, mais ao fim é melhor. Todas as palavras têm significados que são seus, dono de toda a semântica-existência, significando à medida que promove sentidos, sentindo o sentido, sentido-sentimento.
Tudo reflete apenas o que pensa, os seus pensamentos são os pensamentos do rei. No tabuleiro ele é a rainha e os peões. Quem dá as coordenadas é ele, subordinados são os menores, não inferiores menores em ordem. Há hierarquia de poder para o que é vivo, tentar omita-la é uma farsa. Impõe ordens, mandou ontem, mandou agora e continuará a mandar mais tarde, mandamentos a todo o momento. Saia daqui, vá para lá, continua andando, não fale, não cale, olhe para mim, não faça isso, suma da minha frente, não diga o meu nome, não dê ordens a quem é Rei!
Toda razão é sua; sabe quando mover os ponteiros. Todos os instantes estão sobre o seu controle - sem ele – não se movem mais; conservavam-se intactos. Pelas suas veias passam o tempo, a todo tempo, não o tempo dos homens, o tempo distinto da realidade, o tempo a quem ninguém controla, o de agora, o tempo de todo o tempo. Os instantes forjados a cada instante, instantâneos a cada segundo, rápidos, ligeiros, movendo ciclicamente, caminhando nessa e naquela direção. Perpassando os movimentos, os jogos, os ventos, os tormentos. Apressando os passos, cada pegada um instante arrancado, cada instante um pé a frente e outro atrás, um a frente e outro indo. Guiando os passos, é dono deles, de cada um deles, ele tem pés, os meus pés, os seus também, de todos nós. Não caminhem rápido com pés que não são seus, os pés é dele, pensa que pisas onde é de vontade? Calculado está cada passo seu.
São os seus anseios que movem os impulsos, ele os tem. Tudo que se sente é sentido primeiro, sentindo primeiro por ele, o sentimento primordial, o inicio do sentir, todo o início é dele. Os sentimentos são ele, sentir ele, sentir nele, sentindo com ele, sentidos para ele, sentimentos em torno dele, sinta com ele, sinta com você, você sinta. Sinta tudo. O coração sente ele, o que vem do coração vem dele, o coração é dele, não, o coração é ele. Todo o amor vem do coração, o amor de coração, coroar a ação, cora a ação. O medo de dentro, o medo dele, o daqui, o medo de mim, o medo de tudo, o medo também é dele, todo o medo de tudo, o medo do mundo, o medo do escuro. O medo vai fundo, fundo a ele, o fundo dele, fundir com ele, fundindo medos, fundindo sentimentos, juntando tudo, colocando tudo no mesmo, costurando junto. Sentindo a tudo, sentindo tudo nele, é sentido, sentido dele.
O todo faz parte do seu universo, em cada instante. As coisas vem à ele e depois voltam. Como vem é segredo, como voltam é mistério. Voltando sempre ao seu pedido, pedido atendido, vindo e rindo, seguindo e indo. Voltando agora que é pedido. Peça agora, venha nessa hora. Peça que venha embora, volte outrora. Tudo é hora, hora de voltar. Voltar para o agora, deixa embora. Não toque agora, a hora não importa, tranque a porta. Não deixe passar a porta, deixe ele voltar de volta. Voltar no agora, ele detém o agora. Tudo tem hora, hora de partir, hora de ir, hora de seguir, hora de parar, hora de pensar, hora de retornar, hora de voltar. Feitos em hora, de sua memória, de seu relógio. Seus ponteiros é que dá a hora, não olhe lá fora, já não é hora. Não sabe o momento dele, mas ele sabe a que hora é hora. Tudo de hora em hora, em suas horas, voltando para o seu agora. Controlando tudo, instantes, segundos, minutos, horas, sem enrola.
E é isso que faz dele forte: é totalmente mutável, as coisas lhe cabem. Muda sempre, sempre mudando, acompanhando mudanças no mundo afora. Tudo em que toca muda, mudando sempre as coisas ao toque, a cada toque um desfoque, desfocando imagens, perfis, corpos, rostos, membros. Promovendo mudanças, trocando os lados, invertendo os eixos, solvendo aqui e pitando ali, desenhando o modelo agora de uma forma, apagando a gosto, à frente riscando o que lhe importa. Tudo molda, tudo faz, faz igual, faz diferente, mas faz sempre, aquilo que faz é um tipo, é um tipo diferente, mas é igual, é oposto e diferente, parecido e semelhante. A criação do diferente, criando em mente, criando na mente, criando mentes, criando o que não se mente. Criando a quem vê crente. Tudo rente, linear, perfeito, bem feito, suas mãos fazem bonito, constroem o que deseja, deseja sempre, desejo em frente.
Sabe a ordem das coisas e dos lugares. É sobre os seus braços que todos dormem. Sabe o passo que conduz a dança. Tem tudo e todos são seus. Controla as cordas do boneco, dá voz ao ser-ventrículo. É sua voz, fala o que deseja, fala nomes, objetos, desejos, insultos, títulos. Designa palavras a seres. Nomeando os seus, nomeia cabeças, nome em cabeças, cabeças com nomes. Abraçando tudo, com o braço controlando, cantarolando, com o canto da mente. Caminhando entre ruas e estradas, cada passada nomes deixados, títulos lançados, traçando dizeres, rogando expressões em prazeres. O que tem feito é criar, criando feitos, criando perfeito, criação de tudo, criando o mundo. O tudo. O todo. Tudo forjando, modelando lugares, pessoas, caminhos, destinos, tranças de vidas, de existências. Fios de mente, tecendo a vida, amarrando todos. O universo é seu, ele é o universo, universalizando tudo.

À ela chamam de consciência


Vinha a mim os devaneios: e eles; eu sabia de onde vinha. Sabia por que dominavam parte do que era; tinham a permissão. Eu a havia concedido. Faziam de mim  ─ não, faziam a mim  ─ o que queriam. Ora, eles tinham esse direito. Aquela vontade não era mais minha, porque me roubaram. Ela próprio se ordenava. Tinha dado lugar a ela ao lado de minha cama, mas já não sabia se lá ela permanecia. Nem a compreendia, apenas podia tê-la. E essa vontade de tê-la era algo voraz, sempre tinha mais poder.  Apenas cedia, cedia como cedia aos dias de inverno que viam e se seguiam.  Aquela vontade fez aqui um jardim; era lá que ela regava as flores de minha consciência. Achava-as belas, mas elas não tinham cor.
─ Oh, não tinham ─ nada tinha tido cor. Quando olhava adiante, via apenas o escuro; sentia que tinha chegado ao fundo. Ali, via essa cor porque era a única que meus olhos podiam refletir. Era esse tom que me agradava; lembrava parte de mim, parte essa que nem tinha consciência. Essa parte me pertencia, embora pouco a conhecesse. Não a via, apenas tinha a certeza de que ela estava sobre mim. Era estranha, mas esse estranho me despertava prazer, semelhante ao convite para a dança. Notava que era através dela que se sentia novamente conectado. É, sentia que havia encontrado novamente a minha conexão, a sintonia me veio. Mas não me lembrava de ter apertado o botão. Sentia que estava a resgatar todos os meus cabos que me foram desconectados.