domingo, 15 de setembro de 2013

Diário de Ana fulana de tal II



Pálida. Ainda branca  pelos dias sórdidos que passara até a última data… o último jantar… a última ocasião em que  encontrou-se com a corte. Decisões e mais decisões vinham-lhe de encontro, consumiam-lhe. Um dia sonhava em reverter o quadro, derrubar a mesa, e defenestrar tudo aquilo que lhe estarrecia a alma. Banhou-se, levemente, massageando a nunca, comprimindo os olhos, e inclinando o rosto para baixo. Angustiada, levantou-se da banheira, envolta no roupão, encaminhou-se ao dormitório. Sentada a cama, tratou de enxugar os longos cabelos na pequena toalha, a que reservara este ofício. Encasulou-se dentro do pesado vestido, abotoando-o por fim. Penteou os longos cabelos, preservando os cachos, cuidadosamente, com a escova que pertencera a avó, e que hoje lhe servia fielmente. Arranjou as pesadas madeixas em um grande coque no topo da cabeça, prendeu com pequenos grampos nas partes dianteiras. Sentou a pequena coroa sobre os mesmos, com cautela. Calçou os sapatos sem nenhuma vontade, ou melhor, empurrou os pés dentro das cavidades. Ergueu-se diante do espelho e disfarçou a pele com o já gasto pó de arroz. Adiantou-se à mesa de escritura, e apanhou o relatório do dia. Avistou ao menos três compromissos importantes e inadiáveis para a ocasião. Lamentou internamente. O último lhe causava náuseas por hora, e talvez, vômitos intensos mais tarde.
No estômago vinha-lhe apavorantes roncos, que podiam ser ouvidos no quarto ao lado. Lembrou-se que não se alimentou o dia inteiro, não sentia fome, ou não tinha vontade de comer, ou não se esforçava a tal. Tonturas vinham-lhe à cabeça, bambeava, as vistas escureciam, o amargo residia à língua; sentou-se rapidamente na cama novamente. Apanhou água sobre o criado-mudo, bebeu ligeiros goles, e inclinou a cabeça sobre os joelhos. “Inferno! O que tenho feito para quedar-me sempre doente?” Praguejava. Deitou inteiramente sobre a cama; quanto ao vestido, pouco se importava com o seu estado. Pregou as pestanas e cochilou.
Passados instantes, a dor ainda a incomodava, lembrou-se de como, estrategicamente, dava respostas a tais infortúnios. Apanhou na primeira gaveta do criado-mudo um pequeno frasco de conteúdo escuro, o tônico. Tomou-o em pequenos goles, sentiu o gosto agridoce descer-lhe a garganta; e, instantes depois, sentiu -se sonolenta. Cerrou os olhos novamente, e, desça vez, sentiu que dormiria profundamente.
─ Quando acordar, direi o que penso a todos eles, a todos, absolutamente todos. Não posso mais viver esse disparate de vida, não mesmo, preciso dar um jeito de livrar-me de tudo isso. Oh, se preciso! Mas como? Como farei? Como sair dessa realidade? Preciso passar a agir como Marieta dos Rochedos, aquela que ninguém a insultava e sempre lhe faziam o que era de seu desejo. Acredito que ainda tenho um de seus colares guardados em uma de minhas arcas. Vestirei um, sim, usarei ainda hoje um de seus extravagantes colares. Terei a força de tal mulher, não serei mais domada! Expulsarei o Lorde Alberto de minha cama, que vá dormir com as criadas, se assim o deseja! Se pensas que podes procurá-las de quando e quando, que more com elas de vez! Não é uma boa alternativa? Ao Conde de Lagos reservo a expulsão definitiva de minha corte, não o quero entre os meus, não preciso mais de seus conselhos mesquinhos e de sua audácia sobre meus calcanhares. 
─ À Duquesa de Vinhais a forca está garantida, quem pensa ser? Ora, que mulher de língua atrevida! Cuidado, Duquesa! O brasão que papai lhe pregou no peito com espantosa rapidez, posso lhe arrancar do mesmo modo! E… posso aproveitar o embalo e também lhe cortar a língua e sacar-lhe os olhos! Fique esperta! E como devo presentear o seu agradável marido? Será que ainda há graça ao povo em ver um enforcamento em público? Há anos que o povo anseia por isto, serei conhecida como a libertadora e redentora desta terra, ah...ei de ser!
 ─ Vejamos, o que poderia fazer para libertar também o povo das falsas promessas do Barão de Pinheral? Confiscar suas terras? Ou talvez incendiar seus engenhos? Poderia fazer um fogueiral maior se juntasse no mesmo balaio as propriedades do também famigerado Duque das Palmeiras. Maravilha! No mesmo fogo, para temperar, poderia mandar desgraçar também os vestidos da malvestida Infante das Vinólias. Uma grandiosidade de espetáculo! O povo aplaudiria de pé, ah, se aplaudiria.
 ─ Poderia mandar passear no exterior toda a prole da infeliz Casa Marron, o país já não precisa de mais de seus malditos herdeiros! Que façam linhagem em outras terras! Xô, canastrões! Falando em casa, que tal mandar catapultar o casarão das horrendas Princesas do Vale? Não precisamos mais de uma política reducionista pregada por tais donzelas! Morte as princesas falsárias!
  ─ E o que fazer com toda essa corte parasita aqui residente? Inventar uma suposta viagem minha ao reino vizinho e mandar os soldados sitiar e derrubar o palácio na sorrateira da noite? Seria uma boa notícia aos países vizinhos!

Batem à porta. Ninguém responde do lado de dentro.
  ─ Majestade!
 O silêncio é absoluto. A criada toma a porta com novas batidas.
 ─ Majestade! Minha senhora, está me ouvindo? Posso entrar?
Ninguém responde e o silêncio permanece.
 Ousada, a criada invade o quarto.
 ─ Mandarei empalar todo o clero, um a um. Não precisamos mais de hipócritas regras de boa convivência. E também…apoiarei eu mesma a reforma...
 ─ Oh, céus, a rainha está a delirar novamente!  − disse a criada, espantada e parada à porta. Observando a rainha, deitada sobre a cama e de olhos fechados,  proferindo impropérios a uma legião de pessoas do reino.

 A criada desceu a escada da torre, rapidamente, em busca do médico da corte.


quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Virgem


Olhe ao chão,
cá está a virgem imantada em pasta de ervas sacras. O corpo servirá aos desejos da Terra,
em penetrar aos fluídos de totalidade pessoal.
 Abençoada pelos encantos da Grã-matra,
já está pronta para jornada, a descoberta do anima,
o resgate dos laços que a ligam com esse e com o outro mundo,
o encontro da ancestralidade,
o investigar do todo,
o princípio sacerdotal,
o toque da vida e o desejo da morte,
o aprendizado de agora e de outras vidas,
 as lições de ganho e de desapego,
o abrir-mão de tudo e o querer de muito.

Pela aprovação do clã que a aceitará em ordens,
e a desejar em mandos.

Pronta ao selo maior do que há em seu sangue,
 que irá guiar os passos dos seus.
Forjar os olhos de todos,
e guiar aos montes.
 Tudo e todo.
É tudo.
O aprendizado fica,
os novos princípios se busca.
O de antes se joga ao longe,
o agora se vive,
o que virá se aguarda.
Deitarão em seus braços,
em busca da glória. 
Agora tem a tribo,
           e a tribo a tem.