terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Anu-preto


             Por volta das 1h30 da madruga, ele começou a cantar. Era o mesmo canto triste e melodramático de sempre.  Como se chorasse ele ia se despedindo de mais um. Este animal indefeso sempre aparecia para anunciar mais uma passagem para o outro mundo. Quando estava a cantar nas proximidades da vila, o propósito era quase sempre o mesmo: um novo augúrio.
            Lembro-me de seu primeiro cantar a uns oito anos. Ele veio sorrateiro, tímido e prostrou-se a cantar sob uma árvore no meio da pracinha da cidade. O canto era baixo e triste. Neste mesmo dia, recebi a notícia que seu Vicente, o padeiro, deixou-nos às 2h00 da matina, não chegando a ver o sol nascer no dia seguinte. Era um senhor calmo e sorridente, recebia a todos com muita paciência e generosidade. Ao longo dos anos, tocou o negócio da família, que herdara de seus pais, ao lado dos outros dois irmãos. Era uma pessoa visionária e vivida.
            Na sua segunda vinda, o canto do pássaro era já mais encorpado e alto. Se não me falha a memória, era uma terça de inverno e o dia estava bem frio e com serração constante. Chegou à praça cedo, ainda de madrugada, prostrou-se novamente sobre uma árvore e começou o seu canto de lamento e angústia. Desta vez, estava anunciando a morte de dona Virgínia, uma senhora aposentada, que vivia ao norte da vila. Já tinha idade avançada e sofria de alguns problemas sérios de saúde, alguns sem nenhuma esperança de recuperação. O lamento do pássaro não durou muito e cessou-se rapidamente. No dia seguinte, a vila já sabia da notícia e o enterro aconteceu timidamente e com poucos presentes. Esta distinta senhora, de aparência excêntrica e quieta, tinha poucos amigos e viveu maior parte do tempo reclusa e distante do convívio social.
            O terceiro canto do anu aconteceu em uma tarde já quase escurecendo. Era um dia normal como qualquer outro, um dia de trabalho semanal. A maior parte dos moradores estava voltando da cidade, de seus respectivos trabalhos. Este dia foi marcado por grande comoção, porque desta vez quem nos deixou foi um jovem rapaz, com muita energia e cheio de vida. Era capitão do time de futebol da escola municipal da vila. Acostumados com mortes todos estão, mas não como perdas repentinas e de pessoas ainda pueris. A notícia foi recebida com choque e comoção mutua. O rapaz era filho da oficiala de justiça da cidade, o que, de certa forma, concedeu-lhe maior prestígio e honrarias.
            O quarto lamento do pássaro foi em uma manhã de domingo de janeiro, deste mesmo ano. Era um dia chuvoso e caia uma leve chuva de gotas finas, o que deixava o dia com um clima ainda mais fúnebre e apático. Desta vez, o esperto anu chegou e colocou-se sobre uma das árvores encharcadas e cantou roucamente, quase inaudível, porque a chuva e o vento abafara o som quase que totalmente. E mesmo assim, não o impediu de cumprir o seu ofício dignamente. Neste mesmo dia, despediu-se a professora de ensino infantil da cidade, que exercia o magistério há mais de vinte anos. Havia deixado o marido e três filhos jovens, ainda estudantes. Era uma professora muito querida e havia deixado o seu carisma entre os jovens. O seu enterro foi marcado por homenagens emocionadas do corpo docente e dos jovens estudantes, do colégio municipal.
            Assim, seguiram-se os dias, os meses e os anos. O pássaro viera dia após dia anunciar e lamentar os seus mortos. O seu canto às vezes forte, outrora fraco foi-se apagando e se enfraquecendo. Mas não deixou de exercer o seu ofício até os seus últimos dias. Determinado dia, o anu-preto já velho, cantou a última vez na praça, desta vez não cantou a morte de ninguém dos humanos e sim a sua própria. Deu um último assovio triste e fraco e despencou do galho e rumou ao chão, sem vida. Ali permaneceu até que a terra o devorasse, e o levasse ao ciclo do eterno retorno. Como a vida não para e as engrenagens sempre voltam ao seu lugar. Não muitos dias depois, um jovem anu apareceu em seu lugar, e repetiu o rito com maestria. A cada despedida tornou a cantar e anunciar os mortos daquela terra.

A pisadeira



            Eram mais ou menos umas três da manhã. Senti meus pés frios e uma sensação de dormência invadindo o meu corpo. Estava desconfortável, não conseguia mover nem os membros superiores e nem os inferiores. Apenas meus olhos estavam abertos. E, aos poucos, percebia o quarto inteiro esfriando e uma neblina tonando conta do espaço.
            Estava incrivelmente imóvel. Repito: imóvel. A angústia me vinha e, por vezes, o medo. Porque não era nem a primeira e talvez não fosse a última vez que isso aconteceria. Já conhecia bem esse estado catatônico apavorante. E pior, sabia bem o que esta experiência me proporcionava: pavor e sensações indescritíveis.
            O quarto continuava a esfriar. As frestas da janela deixavam adentrar ao recinto uma neblina grossa e densa. O quarto estava suficientemente escuro. E o meu medo continuava a aumentar. Tentava fechar os olhos e não obtinha respostas. Já não tinha controle sobre o meu corpo.
            Ao fundo do quarto ouvia um som se intensificando cada vez mais. O som me era familiar e só de ouvi-lo já me assustava. O que o emitia também já era conhecido por mim.
            Quando o quarto já estava tomado por toda a neblina, ouvi o primeiro movimento rápido e fantasmagórico. Ela escalou rapidamente a parede esquerda do quarto. Em seguida, saltou para o teto e de lá me mirou com seus olhos amarelados. No rosto trazia um sorriso debochado.
            Ainda imóvel na cama, tentei mexer os dedos e nada. Meu corpo ainda não respondia aos meus comandos. Tentei desviar o olhar e não a encarar. Sem sucesso, também não tinha este controle sobre minha face.
            Em um só salto − ela, a pisadeira − montou sobre o meu corpo indefeso. A princípio, movimentava-se estranhamente sobre mim, como se cavalgasse. Em seguida, posicionou as mãos em volta do meu pescoço e iniciou mais de uns seus rituais macabros de sufocamento. Sentia, aos poucos, o ar me faltar. E, sem vitória, tentava me mover e não conseguia, como sempre.
            Ela continuou seu ritual nefasto sobre minha pessoa. Ia me machucando e ceifando a minha vida gradativamente. E continuou com seu sorriso debochado, como se o rito a satisfizesse e a desse prazer. E aparentemente dava.
            Senti-me morrendo. Já não sentia a mim e nem nada. Só via um branco opaco e profundo em minha volta. Nada escutava também e tampouco me sentia respirar.
            Ao fundo, ouvi mais um grito, dessa vez era masculino e encorpado. Chamava meu nome. Chamou uma, duas, três...e repetidas vezes.  Logo após, senti meu corpo chocalhar com força, algo me firmava pelos ombros e sacudia forte. Não sabia o que se passava. Aos poucos, fui sentindo meus sentidos sendo recuperados. E já conseguia sentir a minha respiração também. Abri levemente os olhos e consegui ver, mesmo que turvo, a imagem de meu esposo Walter. Ele me chamava pelo nome, mas ouvia como se fosse a quilômetros de distância. Por fim, recuperei a audição e consegui ouvi-lo dignamente.
            − Alice, acorde! – insistia ele, com o semblante assustado. − Vamos, acorde!
            Percebia-me acordada, mas ainda estava estranhamente fora daquela realidade.  Sentei-me sobre a cama e tentei me acalmar, enquanto Walter me oferecia um copo com água e afagava meus cabelos, com olhos preocupados. Não era nem a primeira e provavelmente não seria a última que aquele evento me aconteceria. Era esta mais uma noite mal dormida e seria também mais um dia repleto de preocupações e medos.