quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Padilha


        No balanço de um andar sensual, que vem a passos lentos, embalado por movimentos, simetricamente calculados, de quadris largos. Por onde passa encanta, encanta tudo, encanta a todos. No olhar a sedução, hipnotiza os olhos dos passantes, dos que aqui estão e também dos que virão.
         Na mão esquerda um longo cigarro, que de trago em trago, enche o ar de uma fumaça levemente cinzenta e adocicada. Na outra mão, um cálice de vinho tinto, bebe muito, mas não perde a lucidez nunca, sempre alerta e preparada para a batalha.
           A gargalhada pode ser ouvida ao longe, a uns assusta e a outros encanta. Liberta de vícios e a outros ensina. Rainha do povo da rua. Traz a magia no olhar, e sua saia, freneticamente, a rodar.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Ceifador

Atacou-o com dois golpes rápidos, atingindo-o sob o pescoço; caiu levemente ao chão, o sangue escorreu sobre toda a vegetação rasteira, em instantes via-se um lençol vermelho vivo sob todo o chão. 
         Olhou-o nos olhos, seus olhos ainda agonizavam, silenciosamente – em um misto de medo e ódio – feras não lidam bem com derrotas. Tampouco, covarde – derrota covarde. Havia desferido três golpes em seu pescoço. O primeiro para ceifar, o segundo para derrubar, o terceiro para garantir a morte, quando um só bastava, os outros eram arrogância. Guerreiros também são covardes. As presas, muitas vezes, lhe são um fantasma obsoleto.
        O primeiro olhar lhe causou ódio, o posterior trouxe-lhe alívio, o último um tremendo pesar. A besta não o tinha atacado. Ele sim, a emboscou-a, e em atitude Judas ceifou-a, covardemente.
        O pai o tinha dito: “não matarás sem que o fim seja o alimento”. O arrependimento tardio já não o consola. Um demônio pessoal ao chão, que não há de voltar, e, por fim, uma lição.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Antigos



            I

Juntos estarão a evocar,
a energia dos cosmos,
dos velhos deuses,
O poder de agora
e de outros tempos

A energia que vem através de milênios.
Que resisti ao tempo,
e não cai, não verga.
Não balança ao simples toque,
é de agora e de antes mesmo.

Quando dirás sobre o tempo,
falarás sobre eles − os antigos.
Falarás verdades desconhecidas,
dirás sobre os mistérios,
não tocados por reles.

Quando pensares sobre eles,
pensarás dentro de ti,
dentro do teu íntimo,
fora da razão.


E quando já não vires realidade,
é o poder deles que estarás a tocar,
emanando de onde mesmo se duvida,
está em todos e tudo,
é o todo.

Vossos cantos atravessam realidades,
materiais e imateriais,
dentro de universos, paralelos,
e do real palpável.

Achincalham vidas,
anseios, sentimentos, medos,
Detêm cordas pessoais, a controlar.
Tudo estão a segurar, seguram tudo.

O que há de imaginário é real diante deles,
transformam em material, voláteis-coisas,
que não apresentam formas aos olhos,
o abstrato em concreta realidade.

Sustentam o universo,
porque foram que o construiu.
Senhores das florestas, das águas,
da terra e do céu também.

Reinam em tudo aquilo que existe,
a existência é um dom que veio deles,
para existir há necessidade do vosso parecer,
não há existência fora deles.

Nascendo e renascendo eternamente,
dentro dos seus ciclos de vida.
Uma vida, multiplicando-se em duas,
acrescendo outras, indefinidamente.

São o tudo e o nada,
o caos e a destruição,
e também o criação e a renovação,
o acender e o apagar do pavio,
a centelha e o fim de vida.





quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O jardim das folhas sagradas

Vinha caminhando levemente pela estrada acidentada, cabisbaixa, ainda um pouco confusa, sem muita noção de seu destino. Durante o percurso, avistou alguns caminhantes que iam e voltavam dos povoados vizinhos. Sofia residia em um aglomerado de povoados, que juntos formavam uma grande extensão residencial, quase um país; distante de outros países, inclusive. Passara toda a vida nesse ambiente, pouco conhecia dos costumes de outros povos, e o pouco contato que tivera com o mundo lá fora, foram situações de extrema urgência. Fora criada pela avó, não conhecia os pais. Bem verdade, soubera brevemente da existência da mãe, mas quando chegou aos seus ouvidos notícias referentes à esta, ela já não estava mais interessada em conhecê-la. Tomara por mãe a própria avó, como ela mesma dizia, era a imagem que conhecera de instrutora e criadora; talvez por esse motivo, julgou nunca ser necessário o contato com sua mãe de sangue.
            Os costumes a que Sofia estava acostumada eram milenares, advindos dos primeiros povos, como dizia sua avó e demais anciões de seu povoado. Estes costumes eram ritos e comportamentos que faziam parte do dia a dia de todos do povoado de Banchê, onde a jovem nascera. Estes, por sua vez, perpassavam diversas áreas da vida humana, desde o cuidado com a alimentação diária, o cuidado com a mente, a criação de animais e até mesmo a ornamentação da casa onde se vivia. Os banchenianos são um povo costumeiro e de comportamentos tradicionais, não esquecem e provavelmente jamais esquecerão suas raízes; ainda nos dias atuais fazem e continuam a fazer muito do que os primeiros povos faziam. Acreditam que mantendo esses laços ancestrais, mantêm-se um bom um espírito e, por consequência, passam a ser humanos melhores, podem perceber melhor as coisas pequenas da vida, e entender melhor o seu contato com a natureza, e as relações com os outros povos também serão melhores.
            Deixemos de falar do povo-origem de Sofia, e falemos da própria. A jovem bancheniana já estava perto de completar 16 anos, para poucos essa é uma idade com significado, mas para o povo de Banchê, certamente o é. Nos costumes de Banchê, as donzelas podem optar entre dois destinos: casarem-se ou servir a algum templo local, como sacerdotisa dos antigos mistérios. Quando se opta pelo primeiro caminho, as jovens tomam como marido alguns dos pretendentes que a família lhes põe à disposição. Os Bachenianos não costumam ser impositivos e não são favoráveis ao regime autoritário e não-irrevogável; pelo contrário, entre os povoados do País de Inverno, são, talvez, os mais flexíveis e libertários dentro dos costumes tradicionais. Jovens sempre têm escolhas ─ seja do sexo masculino ou feminino ─ para bem destinarem o rumo de suas vidas. Talvez, o leque de escolhas seja curto ─ sim, é bem verdade. No entanto, para Banchê, que é um dos povoados de menor extensão, eles até são bem desenvolvidos civilmente.
            Sofia é uma dessas donzelas que pôde escolher, e escolheu servir aos Ieruás, é assim que os Banchenianos chamam os antigos deuses, a quem prestam culto desde os primórdios. Não que a jovem Bancheniana julgue-se apta em totalidade a esse caminho, mas sente que é diferente desde cedo, e que também não nascera para constituir matrimônio e ser guardiã de um lar. Em outras palavras, nascera sensível em relação às demais jovens, suas habilidades em lidar e ser compreensível a outrem, fez-lhe encontrar nesse caminho uma possibilidade de vida compatível com seus anseios. Desde moça, sempre sentiu empatia para com os demais seres vivos, encontrava no simples gesto de ajudar o outro uma forma de se sentir mais conectada e próxima dos cosmos e dos deuses.
            Foi a avó quem lhe disse que talvez o seu caminho estivesse diretamente ligado ao bem-estar do outro, nas habilidades de propiciar o conforto necessário a quem lhe procurasse. E, também, desde que se recorda, sempre foi muito devota e religiosa, mesmo alternando momentos de fé fervorosa e balanços em sua crença. Visto por um prisma diferente, Sofia, julgara que os abalos em seu caminho devocional eram formas de manter-se firme em suas convicções e reforçar ainda mais o seu poder de crença.
            Esses eram um dos motivos pelo qual ela fazia o trajeto por essa estrada, nesse mesmo instante, estava indo em busca de um sonho de menina ─ tornar-se sacerdotisa e dedicar os seus dias a servir aos antigos deuses, como residente de um dos Templos Sagrados do País de Inverno. Sabia a importância desse dia em sua vida, afinal, esperou anos para que ele finalmente chegasse. Estava insegura, mesmo tendo confiança em seus talentos natos, a que julgara serem pré-requisitos para investidura no ofício. Na mesma estrada, vira muitas outras meninas tomando o mesmo caminho, e em parecida situação, sozinhas e com uma imensa bolsa sobre as costas. Estes eram alguns sinais de que o caminho seria longo até chegar ao Templo-mãe, e também que os dias de testes e provações seriam longos. Reservara em sua carga, roupas, comidas, livros, e alguns objetos pessoais e de higiene. E supunha que as outras moças também tivessem feito.
            Já chegando a determinado ponto da estrada, começaram a se aglomerar as moças: a estrada se fazia mais estreita, e a partir dali, era tudo muito deserto e com poucos passantes à vista. A necessidade de permanecerem seguras e longe de qualquer infortúnio, faziam que aproximassem e tomassem amizades, rapidamente. Sofia permaneceu sozinha, sempre fora em demasiado tímida e reservada, tinha dificuldade ou não sabia mesmo por onde começar uma relação de amizade.
            Com a cabeça baixa, não pôde ver, mas seus ouvidos foram ligeiros em captar as pegadas se aproximando. Um jovem de estatura mais baixa a sua, e mais corpulenta aproximou-se dela. Sorriu-lhe e desviou rapidamente o olhar, Janice também o fez.
            ─ Perdoe-me, senhora, será que poderia...sabe, não é bom... ─ disse timidamente a jovem, recém-chegada.
            ─ Claro, pode sim, fico satisfeita com a companhia ─ Sofia respondeu institivamente.
            ─ Obrigada, senhora. ─ respondeu agradecida a moça.
            ─ Sofia...chamo-me Sofia. ─ respondeu ela ─ Reserve este tratamento às Senhoras do Templo, afinal, sou tão jovem quanto você. ─ sorriu, por fim.
            ─ Perdão...quer dizer...tudo bem! ─ respondeu a jovem robusta, meio atrapalhada ─ Sou Laliana, chama-me apenas de Lia, se quiser, meus pais me chama assim.
            ─ Tudo bem, Lia. Um prazer conhecê-la.
            ─ Sou grata do mesmo modo.
            Um barulho fez com que as moças parassem a caminhada e fizessem um aglomerado à frente. Janice pôs-se na ponta dos pés e tentou ver por cima das cabeças. Nada. Não conseguia ver nada. Ouvia uma voz fina, dizendo algo, não conseguia compreender. Pegou no braço e Lia e puxou rumo à frente.
            ─ Venha! ─ disse ela. E a jovem não hesitou.  – Precisamos descobrir o que está acontecendo.
[Continua...]