quarta-feira, 4 de junho de 2014

Poço




Contaram-me que caminho não-trilhado é caminho perdido. Quando se pisa sobre aquilo que não se quer, ainda sim é aprendizado. Chão tortuoso também é uma forma de lição, pedras e cascalhos à frente, ensina e ensina bem. Deve-se enfrentar de frente os obstáculos-objetos que estão sobre esta estrada. Vejam, uns caíram, outros se apoiam em troncos, outros ainda chegarão e aqui mesmo cairão. Quanto mais se caminha, mas se precisa caminhar, não é uma escolha é uma necessidade, não fui eu quem escolhi essa estrada, ela me veio, porque preciso desse chão, esse recorte me faz bem à medida que me construo sobre ele.
Continuei caminhando, mesmo meus pés fraquejando, eu continuei sobre a estrada. À frente alguém me pediu água, não dei. Não alimento corpos com aquilo que um dia será meu. O que me pertence é meu, e não é algo transferível. Sinto necessidade do pertencimento ─ vejam, a água é do chão, é da terra, é do mundo. Mas, ao passo que está sobre minha guarda, esta me pertence e como pertence eu não posso dizer, apenas a detenho.
Uma vez nessa estrada cavaram um poço, disseram que não era bom, não dava água. Só dava barro. Um barro claro, de cor caramelo. Úmido. Grudento, daqueles que afunda só de pisar. Tinha uma cor estranha e ao mesmo tempo bonita. Era algo belo de se ver, agraciava aos olhos dos passantes. Se quisesse água, desista, não tinha, não havia vida. Morreria de sede. Faleceria por dentro, sufocado pela angústia de não tê-la bebido. − Ah, nada como o toque leve da água, esse toque intimidante, toque tímido e molhado. Que alegra a garganta e entra sem convite.
Em outras vidas tive uma ligação forte com a água, banhava-me cedo sobre ela, ainda fria, quase congelante. Lembro-me dos meus que também se banhavam com ela, mas detestavam o seu toque gélido. Eu, por vez, adorava aquele toque lastimante, o gesto fúnebre, que abraça forte, o toque da morte. Sentia-me tão bem naquele encontro de almas, aquela afinidade me adentrava. Tanta intimidade é de não se dar conta, mesmo quando se tem o prazer e a aproximação necessária. Tão forte, e é assim mesmo o gesto. Quando se faz não tem volta, é uma entrega, uma doação, de uma só ida.
Voltando ao poço, mesmo preenchido por aquele barro fedorento, era uma paisagem magistral. Um belo retrato aos olhos dos que podiam ver. E eram poucos os donos desse prazer. Uma verdadeira ocasião, onde estavam presentes apenas os verdadeiros. Não havia espaço para falsas presenças ou intempéries. Aproxima-me para perto, para olhar seu conteúdo. Era uma curiosidade dessas assim que acontece de repente. Nada tinha ali nada para mim, mas eu precisava desse momento. O poço e eu – ele a me olhar eu a invadi-lo por dentro. Sou assim como quem não quer nada, mas ao mesmo tempo desejo o mundo. Aquele poço não era meu, no entanto, eu o queria, para que eu ainda não sabia. De modo que, o precisar é tão subjetivo como quem objetiva demais um causo. Oras, pois, o causo era meu eu me posicionava dentro dele da forma que eu bem entendia.
 Infinitas vezes tentei fugir dessa não-aproximação com superfícies para onde não houvera o convite. Em locais onde podia cair e não mais voltar. Embora confesse que locais onde se cai e não se volta mais ou não se deseja voltar, sempre me foi um desejo incansável. − Ah, poderia parar de fitar aquele poço, maldito local de visual assombroso e clima hostil. Mas o anseio de voltar-me à sua superfície era algo voraz, não me deixava um só instante. Não era bem uma vontade, era algo bem mais carnal, era uma vaidade. Vaidade essa que se constituía a cada instante que eu me permitia fantasiar fatos reais do cotidiano.
Mais um passante. Dessa vez não passou. Ficou e me olhou, olhou-me bem, dos pés à cabeça, como quem investiga. Olhou o poço, e a mim, mais uma vez. Olhou o poço, olhou a mim. O poço mais uma vez, e a mim novamente. Não o deixei por um só instante, lancei um olhar ao poço de pertencimento. Precisava deixar claro minhas propriedades, ou seriam intenções? Quanto mais se afastava o estranho, mais eu me apossava do poço. O meu pertencimento sobre ele só aumentava. Era meu. O que podia fazer o estranho sobre a minha posse? Era de minha guarda aquele portal entre o lado de baixo e o lado de cima.
Ora, pois, vejo o poço como o que liga o de cima e o de baixo, ou o de baixo e o de cima? É uma passagem singela entre duas superfícies, a ponte entre os dois mundos. É aquilo que se atravessa em busca de outro plano, um plano que está abaixo, bem no ínfimo da terra. Para onde vão os que estão em busca de abrigo. Onde se direciona outras vontades, talvez, bem diferentes destas. Esse canal faz uma ligação direta entre o branco e o escuro, entre o claro e negro. Quando lá se pisa, ah, não é a mesma pegada daqui, é algo bem mais distinto. Outro universo.
Outros caminhantes, com outras pegadas. Com outros modos, outras formas, outros olhares. Caminham de um jeito quem aqui não se vê. Os caminhantes do outro plano. O plano de baixo, ou será que caminham no plano de cima? Estão abaixo, ou estão acima? São importantes ao modo deles, seja nesse ou no outro plano. Não possuem características nossas. São os donos do poço, o poço-passagem, o túnel para o debaixo, ou será a passagem para o de cima? Esse poço-caminho que tenho prazer em tê-lo, que me sinto conectado ao passo que estou lá e estou aqui. E quando posso desço, quando quero subo de novo. E recomeço. Um caminho de princípio, meio e fim. Não sou daqui, sou de lá, e de lugar nenhum. O poço é a passagem, é a escada para as escolhas. Engana-se quem acredita que estar abaixo é fracasso, embaixo é onde recolho fôlego para saltar acima, e me posicionar à frente dos que duvidaram.
Poço-passagem, por onde passo quando tenho vontade, e onde desço e subo quando quero. − Oh, poço dedico-te as minhas caídas e erguidas. Cai e levantei tantas vezes em teu interior, que hoje já faço com naturalidade. E faço porque preciso, porque quero e porque não posso mais parar. É um caminho  que escolhi para mim e um caminho que não mais abdicarei. A ti devo o ontem, o hoje, e te deverei eternamente o amanhã.
 Assim, afasto-me do poço, recolho-me do portal-passagem. E o deixo mais uma vez. É uma despedida cruel, quando se deixa para trás algo que não se quer abrir mão. Voltar à superfície, quando se quer estar abaixo, quando se deseja estar dentro do canal entre os dois mundos, é uma dor que não tem cura. Voltar-me ao objetivo do dia, quando na verdade o quero é o irreal, é um vazio sem um preenchimento possível.
           Quando volto à estrada, passantes cruzam por mim e me olham, me olham dos olhos à cabeça mais uma vez. Olham-me como quem quer a resposta para minha angústia, e eu não a tenho para dá-los. Não posso dizer-lhes o vazio que é não estar mais sobre o canal. Ponho meu pote d'água sobre a cabeça e sigo viagem. Pensando se algum dia ei de retornar mais uma vez ao ponto de origem do mundo. 


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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A que caminha entre os lobos


Lá vem a velha, que habita os lugares onde todos desconhecem e onde jamais pisaram; se por lá chegou, se perdeu do bando ou dos caminhos por onde andara. Onde se chega à procura do algo esquecido ou daquilo que nunca encontrará. Passou pisando firme entre as estradas lamacentas, seus passos eram ligeiros como os dos lobos, no entanto, se desejas ver seus rastros, é mera perda de tempo. A cada passo seu, o pé toca o chão, mas o chão não registra o seu caminhar, caminha leve, distante, os passos são irregistráveis, intocáveis, surreais. Nas costas a responsabilidade tocante de recuperar partes, os ossos largados à estrada. Aqueles constituem o caminho, que refaz o esqueleto, das perdas, dos ganhos, da construção. Ora, pedras soltas, peças a alinhavar-se, retocar, colocar novamente ao ritmo, torná-las ao canto, ajustar ao corpo, livrá-las do pranto.
Dos atos perspicazes, não se ilude, não é frutos dos enganos, seus cabelos cobrem-lhe o rosto e o corpo robusto impede os movimentos ligeiros, mas é mais rápida que o pensamento. De sua boca saem os mais distintos sons: ora pia, carcareja, late, silva, ora a língua arrisca algumas palavras humanas. Instrui ao não-erro, não erra jamais, mostra o cadeado, mas não entrega as chaves, nunca, nunca vezes nunca, definitivamente nunca. Sua lição é a não-entrega, é o que pode dar certo, o que o erro não toma, não trata do não-tratado, ignora os intratáveis, dispensa os tratantes. Ressuscita perdidos às margens, sufocados pelo desespero, devora o medo, revive em cada canto almas desalojadas. Mira, recolheu mais ossos, mais alguns, dessa vez dois grandes. Dois robustos, dois fêmur, o par da erguição, do levantar a'lma, do avivar o que se fora. Devolver o ar, soprar os pulmões, inspirar e expirar, respirar de novo, um novo, de novo. Um ovo. Um começo, o brotar de ideias, o subir à garganta de palavras enclausuradas, trazer à margem ossos, os do passado, os que não estão mais aqui, voltar a engrenar, acompanhar o manejo, apertar a folga.
Mora entre os índios do Centro-Oeste ou sob as planícies do cerrado, não se sabe. Ou será dentro do poço? Já a viram andando montada em labaredas de fogo, do sul ao norte, do leste a oeste. Seu nome se confunde pelas estradas, é a Fazedora, A mulher dos Ossos, A trapaceira... e outros nomes impronunciáveis. Não diga seu nome, não abra a boca para convocá-la, não se deve chamá-la. Não obedece aos chamados, não é adestrada, é selvagem, agreste, chame-a estalando os dedos e os devorará todos. Sentiu o cheiro dos ossos ao longe, aproximou-se e investigou-os mais uma vez, dessa vez seis costelas, recolheu-as, dentro do saco corpos a formar. Cantará noites sobre esqueletos, reerguerá muitos, a voz que os toca vem de dentro, do seu íntimo, de mais longe, da alma. Aos ouvidos dos que se foram, deita as mais cruéis verdades, sussurra o medo, o alívio, toca o desalinhado, sua voz alcança o mais fundo, mergulha entre sentimentos, em busca de religar o self, provoca a reconexão. Dá o braço para o alavancar, segura firme os pulsos dos caídos, mas já à margem, solta sem piedade. Cair ou ergue-se, escolhas farás, quem dá a água,  não dá o pão.
Seu ofício é recolher os ossos dos que se foram, e destes faz as paredes de sua casa. Porém, é dos lobos que gosta, desce sorrateira das colinas em buscas de ossos a compor o esqueleto do animal inteiro. Canta sobre suas entranhas, faz a carne, faz as tripas, faz os pêlos, faz o lobo inteiro. É da canção que faz a vida. A vida-éter que sustenta os vivos, nutre o broto, dá de comer aos que tem fome, sacia os mais miseráveis sedentos. Viaja de canto em canto, no ontem, no agora, no amanhã. Não está aqui e nunca esteve. Está aqui, está ali, está onde quer. Não está em lugar nenhum. Atravessa os dois mundos, os dos homens e dos espíritos, como sempre rápida, ninguém a percebe. Quando se vê, já veio e já foi, e o que ficou? O aprendizado, o reencontro, o achado do perdido, o revitalizar do ser, a chance de se ver o escondido, o beijo em face de verdade, o retorno da racionalidade. Tão velha, tão antiga que sua idade não se sabe, mais longeva que os próprios oceanos, não tem idade, é atemporal. No semblante cicatrizes profundas, registros de todos os cantos que passara, de todos os que tocara, de todos que reavivara, de todos que devolvera a alma. É o que é, sabe o que é, sabe de todos, sabe de tudo, em estradas a fora e em estradas adentro, todos a chamam A Que Sabe. Chame nomes, chame os instintos, chame os dons, chame os nobres, chame os pobres, chame-a de A Loba.

A força selvagem inimitável, que a quem toca traz humanidade, humaniza, faz humano, faz animal, faz humano-animal e animal-humano. Dona do escuro, do que não pode ser visto, do que está às sombras, que não se vez à luz do dia.  Ela é o lobo, os lobos, o lobo é ela, os lobos a faz, ela faz os lobos, os lobos fazem dela A Mãe Loba. Os galgos dos lobos são rápidos, mas ela é mais, passa à frente, atravessa o rio respingando água, mas a água não cai. Perpassa os raios do sol, transforma-se em lobo, o lobo se transforma em mulher. Um lobo, uma mulher, o lobo em mulher, mulher em lobo, mulher-lobo.