Adentrou o coche, ligeira.
Ainda na porta, adiantou-se ao cocheiro.
─ Irá passar em frente ao Shopping?
─ Passarei sim, jovem. Entre
─ Apressou-se o motorista.
Correu os olhos sobre os
passageiros já sentados, localizou uma cadeira vazia no início e sentou-se.
Enquanto passeava os olhos pelas folhas do seu livro de mão, a passageira do
assento da frente perturbou-o.
─ Olha lá, olha lá! ─ resmungava inquieta ─ brincadeira,
viu... brincadeira!
─ Oi? ─ disse o jovem, entre
os dentes, e coçou a cabeça.
─ Ali, filho, olha lá! ─
apontou rapidamente para a placa ao canto da pista ─ viu? Estão trocando as
placas antigas por placas novas, com a respectiva tradução para o inglês, tudo
por conta dos jogos!
─ É verdade, nem tinha visto ainda.
─ Brincadeira, viu....brincadeira um negócio
desse ─ insistia ela ─ um país desse com tanta pobreza, com tanta desigualdade,
com tantas mazelas, e tantas outras necessidades... investindo em plaquinha
traduzida, só para agradar gringo.
─ Aham, a senhora tem razão.
─ Sabe o que me revolta? O descaso com os
pilares fundamentais da sociedade: saúde, educação e segurança. ─ dizia com o
dedo erguido ao céu ─ não repassam a verba necessária para esses segmentos, e
em virtude disso, os mesmos não funcionam direito. E para onde está indo esse
dinheiro? Ora bolas, para plaquinhas para gringo ver. Ah, vá a ....!
O jovem confirmava, balançando a cabeça.
Enquanto a passageira, ao seu lado, debochava com risinhos abafados.
─ Está vendo isso aqui? ─ abriu a sacola que
levava sobre a perna e retirou um pote de barro, redondo. ─ é marmita! Sabe de
onde vem?
─ Não, senhora.
─ Peguei em um manifesto
de rua, de onde acabei de vir. Após o ato, os organizadores distribuíram aos
participantes; algumas pessoas não quiseram e me deram. Vai ser a minha ceia e
de meus meninos; consegui pegar três, olha! ─ abriu um e mostrou o que tinha
dentro ─ É comida de primeira, já estou até com fome só de olhar. ─ deu um
sorriso triste.
O rapaz a olhou nos olhos,
e percebeu em seu olhar todo o histórico de sofrimento pelo qual aquela jovem
senhora havia passado nos últimos meses. As marcas de expressão em seu rosto
registravam cada dia de trabalho duro enfrentado, cada desaforo engolido, cada
palavra omitida em necessidade.
─ Sou estudada, rapaz. Não sou pedinte, não. ─
adiantou-se em corrigir qualquer juízo de falso valor que pudesse ter sido
criado pelo jovem ─ estou levando essas poções de comidas para casa, porque o
que ganho não está dando para sustentar a mim e aos meus garotos. Mas tenho
estudo, sou enfermeira da Santa Casa!
─ É uma pena, não? ─
insinuou o rapaz.
─ O quê? ─ quis saber ela.
─ Que a senhora, com todo
esse estudo, tenha que passar por tudo isso.
─ É filho, mas vá se
acostumando, os profissionais mais importantes do país são os que mais apanham
do Estado. É médico, enfermeiro, professor...
─ Serei professor.
─ Lamento muito, jovem.
─ O quê?
─ Que tenha que passar por
isso. Não desejo o que passo a ninguém.
O jovem não respondeu. Calou-se.
─ Trabalho três turnos para poder sobreviver,
espero que não precise fazer o mesmo.
─ Espero que isso um dia mude.
─ Mudará sim, rapaz. O dia
em que aprendermos a pensar.
Despediu-se e desceu do coche levando consigo
sua sacola cheia de marmitas e de esperança.