Lá vem a velha, que habita os lugares onde todos
desconhecem e onde jamais pisaram; se por lá chegou, se perdeu do bando ou dos
caminhos por onde andara. Onde se chega à procura do algo esquecido ou daquilo
que nunca encontrará. Passou pisando firme entre as estradas lamacentas, seus
passos eram ligeiros como os dos lobos, no entanto, se desejas ver seus
rastros, é mera perda de tempo. A cada passo seu, o pé toca o chão, mas o chão
não registra o seu caminhar, caminha leve, distante, os passos são irregistráveis,
intocáveis, surreais. Nas costas a responsabilidade tocante de recuperar
partes, os ossos largados à estrada. Aqueles constituem o caminho, que refaz o
esqueleto, das perdas, dos ganhos, da construção. Ora, pedras soltas, peças a
alinhavar-se, retocar, colocar novamente ao ritmo, torná-las ao canto, ajustar
ao corpo, livrá-las do pranto.
Dos atos perspicazes, não se ilude, não é frutos
dos enganos, seus cabelos cobrem-lhe o rosto e o corpo robusto impede os
movimentos ligeiros, mas é mais rápida que o pensamento. De sua boca saem os
mais distintos sons: ora pia, carcareja, late, silva, ora a língua arrisca
algumas palavras humanas. Instrui ao não-erro, não erra jamais, mostra o
cadeado, mas não entrega as chaves, nunca, nunca vezes nunca, definitivamente
nunca. Sua lição é a não-entrega, é o que pode dar certo, o que o erro não
toma, não trata do não-tratado, ignora os intratáveis, dispensa os tratantes.
Ressuscita perdidos às margens, sufocados pelo desespero, devora o medo, revive
em cada canto almas desalojadas. Mira, recolheu mais ossos, mais alguns, dessa
vez dois grandes. Dois robustos, dois fêmur, o par da erguição, do levantar
a'lma, do avivar o que se fora. Devolver o ar, soprar os pulmões, inspirar e
expirar, respirar de novo, um novo, de novo. Um ovo. Um começo, o brotar de
ideias, o subir à garganta de palavras enclausuradas, trazer à margem ossos, os
do passado, os que não estão mais aqui, voltar a engrenar, acompanhar o manejo,
apertar a folga.
Mora entre os índios do Centro-Oeste ou sob as
planícies do cerrado, não se sabe. Ou será dentro do poço? Já a viram andando
montada em labaredas de fogo, do sul ao norte, do leste a oeste. Seu nome se
confunde pelas estradas, é a Fazedora, A mulher dos Ossos, A trapaceira... e
outros nomes impronunciáveis. Não diga seu nome, não abra a boca para
convocá-la, não se deve chamá-la. Não obedece aos chamados, não é adestrada, é
selvagem, agreste, chame-a estalando os dedos e os devorará todos. Sentiu o
cheiro dos ossos ao longe, aproximou-se e investigou-os mais uma vez, dessa vez
seis costelas, recolheu-as, dentro do saco corpos a formar. Cantará noites
sobre esqueletos, reerguerá muitos, a voz que os toca vem de dentro, do seu
íntimo, de mais longe, da alma. Aos ouvidos dos que se foram, deita as mais cruéis
verdades, sussurra o medo, o alívio, toca o desalinhado, sua voz alcança o mais
fundo, mergulha entre sentimentos, em busca de religar o self, provoca a
reconexão. Dá o braço para o alavancar, segura firme os pulsos dos caídos, mas
já à margem, solta sem piedade. Cair ou ergue-se, escolhas farás, quem dá a
água, não dá o pão.
Seu ofício é recolher os ossos dos que se foram, e
destes faz as paredes de sua casa. Porém, é dos lobos que gosta, desce
sorrateira das colinas em buscas de ossos a compor o esqueleto do animal
inteiro. Canta sobre suas entranhas, faz a carne, faz as tripas, faz os pêlos,
faz o lobo inteiro. É da canção que faz a vida. A vida-éter que sustenta os
vivos, nutre o broto, dá de comer aos que tem fome, sacia os mais miseráveis
sedentos. Viaja de canto em canto, no ontem, no agora, no amanhã. Não está aqui
e nunca esteve. Está aqui, está ali, está onde quer. Não está em lugar nenhum.
Atravessa os dois mundos, os dos homens e dos espíritos, como sempre rápida,
ninguém a percebe. Quando se vê, já veio e já foi, e o que ficou? O
aprendizado, o reencontro, o achado do perdido, o revitalizar do ser, a chance
de se ver o escondido, o beijo em face de verdade, o retorno da racionalidade.
Tão velha, tão antiga que sua idade não se sabe, mais longeva que os próprios
oceanos, não tem idade, é atemporal. No semblante cicatrizes profundas,
registros de todos os cantos que passara, de todos os que tocara, de todos que
reavivara, de todos que devolvera a alma. É o que é, sabe o que é, sabe de
todos, sabe de tudo, em estradas a fora e em estradas adentro, todos a chamam A
Que Sabe. Chame nomes, chame os instintos, chame os dons, chame os nobres,
chame os pobres, chame-a de A Loba.
A força selvagem inimitável, que a quem toca traz
humanidade, humaniza, faz humano, faz animal, faz humano-animal e
animal-humano. Dona do escuro, do que não pode ser visto, do que está às
sombras, que não se vez à luz do dia. Ela é o lobo, os lobos, o lobo é
ela, os lobos a faz, ela faz os lobos, os lobos fazem dela A Mãe Loba. Os
galgos dos lobos são rápidos, mas ela é mais, passa à frente, atravessa o rio
respingando água, mas a água não cai. Perpassa os raios do sol, transforma-se
em lobo, o lobo se transforma em mulher. Um lobo, uma mulher, o lobo em mulher,
mulher em lobo, mulher-lobo.
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