Por volta das 1h30 da madruga, ele começou a cantar. Era o mesmo canto triste e
melodramático de sempre. Como se
chorasse ele ia se despedindo de mais um. Este animal indefeso sempre aparecia
para anunciar mais uma passagem para o outro mundo. Quando estava a cantar nas
proximidades da vila, o propósito era quase sempre o mesmo: um novo augúrio.
Lembro-me
de seu primeiro cantar a uns oito anos. Ele veio sorrateiro, tímido e
prostrou-se a cantar sob uma árvore no meio da pracinha da cidade. O canto era
baixo e triste. Neste mesmo dia, recebi a notícia que seu Vicente, o padeiro,
deixou-nos às 2h00 da matina, não chegando a ver o sol nascer no dia seguinte.
Era um senhor calmo e sorridente, recebia a todos com muita paciência e
generosidade. Ao longo dos anos, tocou o negócio da família, que herdara de
seus pais, ao lado dos outros dois irmãos. Era uma pessoa visionária e vivida.
Na
sua segunda vinda, o canto do pássaro era já mais encorpado e alto. Se não me
falha a memória, era uma terça de inverno e o dia estava bem frio e com
serração constante. Chegou à praça cedo, ainda de madrugada, prostrou-se
novamente sobre uma árvore e começou o seu canto de lamento e angústia. Desta
vez, estava anunciando a morte de dona Virgínia, uma senhora aposentada, que
vivia ao norte da vila. Já tinha idade avançada e sofria de alguns problemas
sérios de saúde, alguns sem nenhuma esperança de recuperação. O lamento do
pássaro não durou muito e cessou-se rapidamente. No dia seguinte, a vila já
sabia da notícia e o enterro aconteceu timidamente e com poucos presentes. Esta
distinta senhora, de aparência excêntrica e quieta, tinha poucos amigos e viveu
maior parte do tempo reclusa e distante do convívio social.
O
terceiro canto do anu aconteceu em uma tarde já quase escurecendo. Era um dia
normal como qualquer outro, um dia de trabalho semanal. A maior parte dos
moradores estava voltando da cidade, de seus respectivos trabalhos. Este dia
foi marcado por grande comoção, porque desta vez quem nos deixou foi um jovem
rapaz, com muita energia e cheio de vida. Era capitão do time de futebol da
escola municipal da vila. Acostumados com mortes todos estão, mas não como
perdas repentinas e de pessoas ainda pueris. A notícia foi recebida com choque
e comoção mutua. O rapaz era filho da oficiala de justiça da cidade, o que, de
certa forma, concedeu-lhe maior prestígio e honrarias.
O
quarto lamento do pássaro foi em uma manhã de domingo de janeiro, deste mesmo
ano. Era um dia chuvoso e caia uma leve chuva de gotas finas, o que deixava o
dia com um clima ainda mais fúnebre e apático. Desta vez, o esperto anu chegou
e colocou-se sobre uma das árvores encharcadas e cantou roucamente, quase
inaudível, porque a chuva e o vento abafara o som quase que totalmente. E mesmo
assim, não o impediu de cumprir o seu ofício dignamente. Neste mesmo dia,
despediu-se a professora de ensino infantil da cidade, que exercia o magistério
há mais de vinte anos. Havia deixado o marido e três filhos jovens, ainda
estudantes. Era uma professora muito querida e havia deixado o seu carisma
entre os jovens. O seu enterro foi marcado por homenagens emocionadas do corpo
docente e dos jovens estudantes, do colégio municipal.
Assim,
seguiram-se os dias, os meses e os anos. O pássaro viera dia após dia anunciar
e lamentar os seus mortos. O seu canto às vezes forte, outrora fraco foi-se
apagando e se enfraquecendo. Mas não deixou de exercer o seu ofício até os seus
últimos dias. Determinado dia, o anu-preto já velho, cantou a última vez na
praça, desta vez não cantou a morte de ninguém dos humanos e sim a sua própria.
Deu um último assovio triste e fraco e despencou do galho e rumou ao chão, sem
vida. Ali permaneceu até que a terra o devorasse, e o levasse ao ciclo do
eterno retorno. Como a vida não para e as engrenagens sempre voltam ao seu
lugar. Não muitos dias depois, um jovem anu apareceu em seu lugar, e repetiu o
rito com maestria. A cada despedida tornou a cantar e anunciar os mortos
daquela terra.