Contaram-me que caminho não-trilhado é
caminho perdido. Quando se pisa sobre aquilo que não se quer, ainda sim é
aprendizado. Chão tortuoso também é uma forma de lição, pedras e cascalhos à
frente, ensina e ensina bem. Deve-se enfrentar de frente os obstáculos-objetos
que estão sobre esta estrada. Vejam, uns caíram, outros se apoiam em troncos,
outros ainda chegarão e aqui mesmo cairão. Quanto mais se caminha, mas se
precisa caminhar, não é uma escolha é uma necessidade, não fui eu quem escolhi
essa estrada, ela me veio, porque preciso desse chão, esse recorte me faz bem à
medida que me construo sobre ele.
Continuei caminhando, mesmo meus pés
fraquejando, eu continuei sobre a estrada. À frente alguém me pediu água, não
dei. Não alimento corpos com aquilo que um dia será meu. O que me pertence é
meu, e não é algo transferível. Sinto necessidade do pertencimento ─ vejam, a
água é do chão, é da terra, é do mundo. Mas, ao passo que está sobre minha
guarda, esta me pertence e como pertence eu não posso dizer, apenas a detenho.
Uma vez nessa estrada cavaram um poço,
disseram que não era bom, não dava água. Só dava barro. Um barro claro, de cor
caramelo. Úmido. Grudento, daqueles que afunda só de pisar. Tinha uma cor
estranha e ao mesmo tempo bonita. Era algo belo de se ver, agraciava aos olhos
dos passantes. Se quisesse água, desista, não tinha, não havia vida. Morreria
de sede. Faleceria por dentro, sufocado pela angústia de não tê-la bebido. − Ah,
nada como o toque leve da água, esse toque intimidante, toque tímido e molhado.
Que alegra a garganta e entra sem convite.
Em outras vidas tive uma ligação forte
com a água, banhava-me cedo sobre ela, ainda fria, quase congelante. Lembro-me
dos meus que também se banhavam com ela, mas detestavam o seu toque gélido. Eu,
por vez, adorava aquele toque lastimante, o gesto fúnebre, que abraça forte, o
toque da morte. Sentia-me tão bem naquele encontro de almas, aquela afinidade
me adentrava. Tanta intimidade é de não se dar conta, mesmo quando se tem o
prazer e a aproximação necessária. Tão forte, e é assim mesmo o gesto. Quando
se faz não tem volta, é uma entrega, uma doação, de uma só ida.
Voltando ao poço, mesmo preenchido por
aquele barro fedorento, era uma paisagem magistral. Um belo retrato aos olhos
dos que podiam ver. E eram poucos os donos desse prazer. Uma verdadeira
ocasião, onde estavam presentes apenas os verdadeiros. Não havia espaço para
falsas presenças ou intempéries. Aproxima-me para perto, para olhar seu
conteúdo. Era uma curiosidade dessas assim que acontece de repente. Nada tinha
ali nada para mim, mas eu precisava desse momento. O poço e eu – ele a me olhar
eu a invadi-lo por dentro. Sou assim como quem não quer nada, mas ao mesmo
tempo desejo o mundo. Aquele poço não era meu, no entanto, eu o queria, para
que eu ainda não sabia. De modo que, o precisar é tão subjetivo como quem
objetiva demais um causo. Oras, pois, o causo era meu eu me posicionava dentro
dele da forma que eu bem entendia.
Infinitas vezes tentei fugir dessa
não-aproximação com superfícies para onde não houvera o convite. Em locais onde
podia cair e não mais voltar. Embora confesse que locais onde se cai e não se
volta mais ou não se deseja voltar, sempre me foi um desejo incansável. − Ah,
poderia parar de fitar aquele poço, maldito local de visual assombroso e clima
hostil. Mas o anseio de voltar-me à sua superfície era algo voraz, não me
deixava um só instante. Não era bem uma vontade, era algo bem mais carnal, era
uma vaidade. Vaidade essa que se constituía a cada instante que eu me permitia
fantasiar fatos reais do cotidiano.
Mais um passante. Dessa vez não passou.
Ficou e me olhou, olhou-me bem, dos pés à cabeça, como quem investiga. Olhou o
poço, e a mim, mais uma vez. Olhou o poço, olhou a mim. O poço mais uma vez, e
a mim novamente. Não o deixei por um só instante, lancei um olhar ao poço de
pertencimento. Precisava deixar claro minhas propriedades, ou seriam intenções?
Quanto mais se afastava o estranho, mais eu me apossava do poço. O meu
pertencimento sobre ele só aumentava. Era meu. O que podia fazer o estranho
sobre a minha posse? Era de minha guarda aquele portal entre o lado de baixo e
o lado de cima.
Ora, pois, vejo o poço como o que liga o
de cima e o de baixo, ou o de baixo e o de cima? É uma passagem singela entre
duas superfícies, a ponte entre os dois mundos. É aquilo que se atravessa em
busca de outro plano, um plano que está abaixo, bem no ínfimo da terra. Para
onde vão os que estão em busca de abrigo. Onde se direciona outras vontades,
talvez, bem diferentes destas. Esse canal faz uma ligação direta entre o branco
e o escuro, entre o claro e negro. Quando lá se pisa, ah, não é a mesma pegada
daqui, é algo bem mais distinto. Outro universo.
Outros caminhantes, com outras pegadas.
Com outros modos, outras formas, outros olhares. Caminham de um jeito quem aqui
não se vê. Os caminhantes do outro plano. O plano de baixo, ou será que
caminham no plano de cima? Estão abaixo, ou estão acima? São importantes ao
modo deles, seja nesse ou no outro plano. Não possuem características nossas.
São os donos do poço, o poço-passagem, o túnel para o debaixo, ou será a
passagem para o de cima? Esse poço-caminho que tenho prazer em tê-lo, que me
sinto conectado ao passo que estou lá e estou aqui. E quando posso desço,
quando quero subo de novo. E recomeço. Um caminho de princípio, meio e fim. Não
sou daqui, sou de lá, e de lugar nenhum. O poço é a passagem, é a escada para
as escolhas. Engana-se quem acredita que estar abaixo é fracasso, embaixo é
onde recolho fôlego para saltar acima, e me posicionar à frente dos que
duvidaram.
Poço-passagem, por onde passo quando
tenho vontade, e onde desço e subo quando quero. − Oh, poço dedico-te as minhas
caídas e erguidas. Cai e levantei tantas vezes em teu interior, que hoje já
faço com naturalidade. E faço porque preciso, porque quero e porque não posso
mais parar. É um caminho que escolhi para mim e um caminho que não mais
abdicarei. A ti devo o ontem, o hoje, e te deverei eternamente o amanhã.
Assim, afasto-me do poço,
recolho-me do portal-passagem. E o deixo mais uma vez. É uma despedida cruel,
quando se deixa para trás algo que não se quer abrir mão. Voltar à superfície,
quando se quer estar abaixo, quando se deseja estar dentro do canal entre os
dois mundos, é uma dor que não tem cura. Voltar-me ao objetivo do dia, quando
na verdade o quero é o irreal, é um vazio sem um preenchimento possível.
Quando volto à estrada, passantes cruzam por mim e me olham, me olham dos olhos
à cabeça mais uma vez. Olham-me como quem quer a resposta para minha angústia,
e eu não a tenho para dá-los. Não posso dizer-lhes o vazio que é não estar mais
sobre o canal. Ponho meu pote d'água sobre a cabeça e sigo viagem. Pensando se
algum dia ei de retornar mais uma vez ao ponto de origem do mundo.
Angústias, medos, desafetos, em um retrato de um mundo tão distante daquilo que se quer, um jeito de encontrar num fosso a válvula de escape de tudo. Lindo, parabéns.
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