─ Vamos, acorde! ─ disse o velho,
mirando-a de cima, sobre a cama de pedra; onde ainda permanecia deitada.
─ Não! Preciso tentar mais uma vez ─
respondeu a garota, despertando-se ─, deixe-me tentar só mais uma vez?
─ Não, minha garotinha, por hoje já é
o bastante – concluiu ele ─, ainda terá mais oportunidades de tentar.
─ Por favor, vovô, só mais uma vez.
O velho abriu um longo sorriso amarelo
e passou a mão sobre a cabeça da garota.
─ Demitria, sabe bem quantas
oportunidades diárias lhe são dadas para a tentativa de realizar o feito. Essa
foi a última; apenas não foi dessa vez, mas, como disse, ainda terá tantas
outras.
─ Mas...mas eu já estava tão perto de
encontrá-lo, vovô ─ retrucou a garota.
O velho sorriu novamente.
─ E como ele era? Quantas patas? Tinha
asas?
─ Acho que era um felino.
Tal declaração instigou-o.
─ Ah...bem, deixe-me ver ─ disse ele,
e retirou do bolso de sua túnica uma pequena ampulheta, e mirou-a com exatidão.
─ É, pequena aspirante, acredito que ainda temos mais alguns minutos.
O feiticeiro pegou o tambor
ritualístico que deixara encostado sobre a cama de pedra, instantes antes.
─ Vamos, deite-se e feche os olhos. ─
começou a tocá-lo pausadamente; e a vibração ritmada da canção levou novamente
a garota a adormecer em sono profundo.
Demitria, a pequena garota, estava em
êxtase e sentia seu corpo atravessando uma nova dimensão. Aos poucos, despertou
e viu-se deitada sobre a entrada de uma caverna escura, rodeada por um grande
penhasco. Poderia não entrar se quisesse, mas não o faria. Ela sabia bem o
porquê de está ali. Começou a adentrar a caverna aos poucos; a caverna tinha a
mesma aparência de sempre, escura e misteriosamente silenciosa. Seguiu adiante,
já não tinha mais medo, estivera ali tantas vezes que nem era mais tomada pelo
receio. Depois de uma pequena caminhada pelo chão úmido e escorregadio que
ambientava a superfície do local. Deparou-se com o longo corredor que dava
acesso ao centro da caverna, onde estaria localizada a cúpula. Pronto. Estava
satisfeita, sabia que seria questão de minutos para atravessá-lo e chegar ao
local desejado.
Continuou
seguindo pelo corredor. Ouviu em seguida um barulho, um som diferente, tinha a
impressão que já tinha ouvido algo parecido. Seja lá o que fosse o barulho, ela
notou que, aos poucos, ele aproximava-se mais. Ergueu a cabeça e mirou o teto;
lá estava a fonte do barulho - um grande morcego de olhos avermelhados. Com
muita inocência, pensou ela, pode ser ele o que procurava. Pensou que poderia
tê-la poupado do trabalho de procurá-lo. E, inocentemente, aproximou-se.
─ Oi, senhor morcego. Tudo bem?
O morcego parecia não muito
amigável; continuou mirando-a como um olhar nada convidativo.
A garota continuou.
─ O senh...senhor...seria, por um
acaso, o meu animal... ─ antes mesmo que ela terminasse a frase; o morcego
cortou o ar, velozmente, em sua direção.
Demitria, a pupila do sacerdote
ancião; não por medo, mais por impulso mesmo, disparou em uma rápida corrida. E
o morcego, nada-amigável, continuou a segui-la voando em direção ao topo de sua
cabeça. A garota após correr bastante, alcançou o que parecia ser a cúpula da
caverna, onde estava um enorme círculo de pedra e onde deveriam estar os
animais à sua espera. Mas, percorreu com os olhos a escada rochosa que dava
acesso a parte baixa da cúpula, e não enxergou nenhum deles no perímetro do
círculo. E olhou para trás e lá estava ele, o morcego vindo em sua direção.
Desesperada, tentou descer rapidamente a escada forjada em grandes blocos de
rochas; mas, logo no primeiro degrau, tropeçou e despencou.
Quando despertou, sua cabeça doía e
parecia meio desnorteada. Olhou ao redor e não viu nada e nem ninguém a sua
vista. Notou que tinha caído justamente no centro da cúpula, dentro do círculo
de pedras. Tomada pela falta de discernimento causado pela situação, não
percebera que o morcego de olhos avermelhados estava pousado a poucos metros
dali, na parede da caverna. Quando olhou atrás e o percebeu, tentou novamente
correr, mas antes que o fizesse. Por detrás da escuridão que encobria a cúpula,
saltou, violentamente, um lince em sua direção. A garota, temerosamente,
recuou. O grande morcego não se intimidou com a presença do lince e
apresentou-se para o confronto.
O lince continuou aproximando-se do
grande morcego e soltou um rugido estrondoso afugentado-o. O morcego pareceu, instantaneamente,
mudar de comportamento e desistiu de caçar a garota. Ela, ainda medrosa,
virou-se e mirou o felino e investiu mais uma vez.
─ Desculpe-me, senhor lince, por um
acaso, seria você o meu animal guardião? Perguntou insegura.
O grande felino a ignorou e deu de
costas; seguiu em direção ao circulo de pedras que contornava todo o chão da
cúpula. Saltou em seguida, precisamente, sobre uma das pedras e lá permaneceu
imóvel. E para a surpresa da garota, o morcego também o fez, pousou em uma
delas e permanecera também imóvel. Em um acontecimento rápido, todas as tochas
que estavam em volta do circulo de pedra, e que até então estavam apagadas,
ascenderam-se de forma misteriosa. Através de uma série de movimentos rápidos,
saltando ou voando, vários animais surgiram e tomaram seus postos sobre as
grandes pedras.
Pronto. Era aquela a ocasião tão
esperada pela garota. Era Cerimônia de Apresentação do Animal Totem aos
Aspirantes em Magia. Demitria sabia bem como proceder, posicionou-se ao centro
do grande círculo de pedras e mirou os diversos animais presentes: águia, alce,
búfalo, castor, cisne, coelho, coruja, cobra, gaivota, gato, leão, lobo, onça,
raposa, texugo, urso e vários outros. Ainda insegura, dirigiu-se àquele que
seria o seu primeiro palpite. Por incrível que pareça, a garota tinha ido de
encontro ao morcego feroz de olhos avermelhados.
─ Seu morcego, você
seria...assim...meu animal totem?
O morcego calado estava; calado
permaneceu.
Demitria poderia ter ficado
decepcionada, se não fosse pelo fato de que, não se sentiria nada protegida por
um animal guardião que horas antes havia tentado atacá-la. Sentiu um grande
alívio pela reposta que recebera.
Aproximou-se do próximo.
─ Seu alce, o senhor é o meu animal
guardião?
E do próximo.
─ Dona águia, a senhora é a minha
guardiã?
E de mais um.
─ Seu texugo, o senhor é meu
animal totem?
E nada.
Tinha percorrido quase todo o
círculo. E por hora, chegou ao grande felino que instantes antes a havia
protegido do não-amigável morcego. Encarando-o, meio temerosa, aproximou-se
vagarosamente.
─ Seu lince, o senhor seria, por um
acaso, o meu animal guardião?
Fez-se um breve silêncio. O lince
que ostentava um semblante indiferente; mostrou, aos poucos, um cordial sorriso
e balançou o focinho positivamente. E em seguida, todos os animais fizeram
reverência em sua honra. Ele pulou na frente da garota; aproximou-se, e
inclinou o tronco. Ofertou-lhe montaria em suas costas. A garota, embora, ainda
sentisse certo receio pelo convite; montou-o. Passou a mão devagar sobre sua
cabeça e o abraçou em seguida. O lince percorreu velozmente todo interior da
caverna e seguiu em marcha ligeira na direção do corredor que levava a saída.
Já na saída, Demitria desmontou do
lombo do lince e ficou em dúvida sobre o que faria a partir dali. E, de forma
espontânea, sabendo que ele a entendia, adiantou-se.
─ O que faço agora?
O felino ergueu-se sobre as duas
patas traseiras e apontou com uma das dianteiras o penhasco que estava à
frente. A garota não entendeu a mensagem e aproximou-se das margens do
penhasco. Olhou para baixo e subiu rapidamente a cabeça. Não conseguiu enxergar
nada lá embaixo, além de um emaranhado de nuvens e uma rala neblina que se
estendia por uma imensidão que parecia não ter fim. Tentou mais uma vez.
─ Não estou entendendo. ─ coçou a
cabeça ─ o que devo fazer?
O lince tornou a apontar para o
local. A garota apavorou-se no mesmo instante. ─ Não, não pode ser o que estou
imaginando ─ pensou ela. ─, tudo, menos isso! ─ continuou implorando em
pensamento.
─ Você vai me levar lá em baixo? ─
tentou ela.
O lince balançou a cabeça negativamente.
─ Eu devo ir sozinha?
Agora,
ele balançou a cabeça positivamente.
Apavorou-se novamente. ─ Não,
espere aí! ─ e voltou a olhar o fundo do penhasco ─, você não está esperando
que eu...
Antes que terminasse de falar; o
lince saltou em sua direção, e a empurrou com pelas costas com suas patas
dianteiras. E bem na beirada do penhasco, brecou com suas patas traseiras para
não cair junto. E despediu-se com um sorriso desdenhoso. A garota despencou,
velozmente, pela garganta do penhasco. Que, aparentemente, se perdia em uma
imensidão infinita. Gritou em desespero em sua descida, embora, de nada
adiantasse; seus gritos se perderam em meio ao vão. Demitira sentia seu corpo
tocando as nuvens e a neblina gélida. Novamente entrou em êxtase e permaneceu
inconsciente.
─ Demetria? ─ sacudiu-lhe os
ombros ─ vamos, mocinha! Isso! Retorne devagar. ─ dizia o velho feiticeiro,
passando a mão sobre seu rosto.
Demitria estava agora no mesmo
local de onde partira; deitada sobre a grande mesa de pedra. Sendo monitorada,
atentamente, pelo seu avô.
Ela abriu os olhos devagar. E a
claridade do sol de fim de tarde pareceu incomodá-la. Tornou a fechá-los.
─ Vovô?...vovô? ─ chamou, chorosa.
─ Estou aqui...estou bem ao seu
lado.
─ Onde estou?
─ De volta às Montanhas Prateadas,
em Osmord. ─ respondeu ele.
─ O que aconteceu com o...
─ O lince? Não veio.
─ O senhor o viu?! ─ Viu que ele
me...
─ Não, não vi, mas pude senti-lo ─
interrompeu-a.
─ Vovô, eu o encontrei! ECONTREI! ─
gritou exaltada e pulou sobre o colo do avô.
Ele a abraçou carinhosamente. ─
Sim, mocinha; tem razão, o encontrou. Parabéns! Bom trabalho!
─ E agora, vovô? ─ perguntou
curiosa.
─ Agora? ─ abriu o longo sorriso
amarelado – Agora nós precisamos nos apressar se quisermos chegar à Cardamomo
antes do anoitecer. ─ disse ele, mirando o céu, onde o sol estava muito baixo,
quase se retirando.
Preparam partida e seguiram
descendo as colinas.
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