domingo, 28 de novembro de 2010

A pupila do sacerdote ancião


        ─ Vamos, acorde! ─ disse o velho, mirando-a de cima, sobre a cama de pedra; onde ainda permanecia deitada.
─ Não! Preciso tentar mais uma vez ─ respondeu a garota, despertando-se ─, deixe-me tentar só mais uma vez?
─ Não, minha garotinha, por hoje já é o bastante – concluiu ele ─, ainda terá mais oportunidades de tentar.
─ Por favor, vovô, só mais uma vez.
O velho abriu um longo sorriso amarelo e passou a mão sobre a cabeça da garota.
─ Demitria, sabe bem quantas oportunidades diárias lhe são dadas para a tentativa de realizar o feito. Essa foi a última; apenas não foi dessa vez, mas, como disse, ainda terá tantas outras.
─ Mas...mas eu já estava tão perto de encontrá-lo, vovô ─ retrucou a garota.
O velho sorriu novamente.
─ E como ele era? Quantas patas? Tinha asas?
─ Acho que era um felino.
Tal declaração instigou-o.
─ Ah...bem, deixe-me ver ─ disse ele, e retirou do bolso de sua túnica uma pequena ampulheta, e mirou-a com exatidão. ─ É, pequena aspirante, acredito que ainda temos mais alguns minutos.
O feiticeiro pegou o tambor ritualístico que deixara encostado sobre a cama de pedra, instantes antes.
─ Vamos, deite-se e feche os olhos. ─ começou a tocá-lo pausadamente; e a vibração ritmada da canção levou novamente a garota a adormecer em sono profundo.
Demitria, a pequena garota, estava em êxtase e sentia seu corpo atravessando uma nova dimensão. Aos poucos, despertou e viu-se deitada sobre a entrada de uma caverna escura, rodeada por um grande penhasco. Poderia não entrar se quisesse, mas não o faria. Ela sabia bem o porquê de está ali. Começou a adentrar a caverna aos poucos; a caverna tinha a mesma aparência de sempre, escura e misteriosamente silenciosa. Seguiu adiante, já não tinha mais medo, estivera ali tantas vezes que nem era mais tomada pelo receio. Depois de uma pequena caminhada pelo chão úmido e escorregadio que ambientava a superfície do local. Deparou-se com o longo corredor que dava acesso ao centro da caverna, onde estaria localizada a cúpula. Pronto. Estava satisfeita, sabia que seria questão de minutos para atravessá-lo e chegar ao local desejado.
            Continuou seguindo pelo corredor. Ouviu em seguida um barulho, um som diferente, tinha a impressão que já tinha ouvido algo parecido. Seja lá o que fosse o barulho, ela notou que, aos poucos, ele aproximava-se mais. Ergueu a cabeça e mirou o teto; lá estava a fonte do barulho - um grande morcego de olhos avermelhados. Com muita inocência, pensou ela, pode ser ele o que procurava. Pensou que poderia tê-la poupado do trabalho de procurá-lo. E, inocentemente, aproximou-se.
─ Oi, senhor morcego. Tudo bem?
            O morcego parecia não muito amigável; continuou mirando-a como um olhar nada convidativo.
            A garota continuou.
            ─ O senh...senhor...seria, por um acaso, o meu animal... ─ antes mesmo que ela terminasse a frase; o morcego cortou o ar, velozmente, em sua direção.
           Demitria, a pupila do sacerdote ancião; não por medo, mais por impulso mesmo, disparou em uma rápida corrida. E o morcego, nada-amigável, continuou a segui-la voando em direção ao topo de sua cabeça. A garota após correr bastante, alcançou o que parecia ser a cúpula da caverna, onde estava um enorme círculo de pedra e onde deveriam estar os animais à sua espera. Mas, percorreu com os olhos a escada rochosa que dava acesso a parte baixa da cúpula, e não enxergou nenhum deles no perímetro do círculo. E olhou para trás e lá estava ele, o morcego vindo em sua direção. Desesperada, tentou descer rapidamente a escada forjada em grandes blocos de rochas; mas, logo no primeiro degrau, tropeçou e despencou.
         Quando despertou, sua cabeça doía e parecia meio desnorteada. Olhou ao redor e não viu nada e nem ninguém a sua vista. Notou que tinha caído justamente no centro da cúpula, dentro do círculo de pedras. Tomada pela falta de discernimento causado pela situação, não percebera que o morcego de olhos avermelhados estava pousado a poucos metros dali, na parede da caverna. Quando olhou atrás e o percebeu, tentou novamente correr, mas antes que o fizesse. Por detrás da escuridão que encobria a cúpula, saltou, violentamente, um lince em sua direção. A garota, temerosamente, recuou. O grande morcego não se intimidou com a presença do lince e apresentou-se para o confronto.
            O lince continuou aproximando-se do grande morcego e soltou um rugido estrondoso afugentado-o. O morcego pareceu, instantaneamente, mudar de comportamento e desistiu de caçar a garota. Ela, ainda medrosa, virou-se e mirou o felino e investiu mais uma vez.
            ─ Desculpe-me, senhor lince, por um acaso, seria você o meu animal guardião? Perguntou insegura.
             O grande felino a ignorou e deu de costas; seguiu em direção ao circulo de pedras que contornava todo o chão da cúpula. Saltou em seguida, precisamente, sobre uma das pedras e lá permaneceu imóvel. E para a surpresa da garota, o morcego também o fez, pousou em uma delas e permanecera também imóvel. Em um acontecimento rápido, todas as tochas que estavam em volta do circulo de pedra, e que até então estavam apagadas, ascenderam-se de forma misteriosa. Através de uma série de movimentos rápidos, saltando ou voando, vários animais surgiram e tomaram seus postos sobre as grandes pedras.
            Pronto. Era aquela a ocasião tão esperada pela garota. Era Cerimônia de Apresentação do Animal Totem aos Aspirantes em Magia. Demitria sabia bem como proceder, posicionou-se ao centro do grande círculo de pedras e mirou os diversos animais presentes: águia, alce, búfalo, castor, cisne, coelho, coruja, cobra, gaivota, gato, leão, lobo, onça, raposa, texugo, urso e vários outros. Ainda insegura, dirigiu-se àquele que seria o seu primeiro palpite. Por incrível que pareça, a garota tinha ido de encontro ao morcego feroz de olhos avermelhados.
            ─ Seu morcego, você seria...assim...meu animal totem?
            O morcego calado estava; calado permaneceu.
            Demitria poderia ter ficado decepcionada, se não fosse pelo fato de que, não se sentiria nada protegida por um animal guardião que horas antes havia tentado atacá-la. Sentiu um grande alívio pela reposta que recebera.
            Aproximou-se do próximo.
            ─ Seu alce, o senhor é o meu animal guardião?
 E do próximo.
─ Dona águia, a senhora é a minha guardiã?
 E de mais um.
             ─ Seu texugo, o senhor é meu animal totem?
             E nada.
            Tinha percorrido quase todo o círculo. E por hora, chegou ao grande felino que instantes antes a havia protegido do não-amigável morcego. Encarando-o, meio temerosa, aproximou-se vagarosamente.
            ─ Seu lince, o senhor seria, por um acaso, o meu animal guardião?
            Fez-se um breve silêncio. O lince que ostentava um semblante indiferente; mostrou, aos poucos, um cordial sorriso e balançou o focinho positivamente. E em seguida, todos os animais fizeram reverência em sua honra. Ele pulou na frente da garota; aproximou-se, e inclinou o tronco. Ofertou-lhe montaria em suas costas. A garota, embora, ainda sentisse certo receio pelo convite; montou-o. Passou a mão devagar sobre sua cabeça e o abraçou em seguida. O lince percorreu velozmente todo interior da caverna e seguiu em marcha ligeira na direção do corredor que levava a saída.
Já na saída, Demitria desmontou do lombo do lince e ficou em dúvida sobre o que faria a partir dali. E, de forma espontânea, sabendo que ele a entendia, adiantou-se.
            ─ O que faço agora?
            O felino ergueu-se sobre as duas patas traseiras e apontou com uma das dianteiras o penhasco que estava à frente. A garota não entendeu a mensagem e aproximou-se das margens do penhasco. Olhou para baixo e subiu rapidamente a cabeça. Não conseguiu enxergar nada lá embaixo, além de um emaranhado de nuvens e uma rala neblina que se estendia por uma imensidão que parecia não ter fim. Tentou mais uma vez.
            ─ Não estou entendendo. ─ coçou a cabeça ─ o que devo fazer?
            O lince tornou a apontar para o local. A garota apavorou-se no mesmo instante. ─ Não, não pode ser o que estou imaginando ─ pensou ela. ─, tudo, menos isso! ─ continuou implorando em pensamento.
            ─ Você vai me levar lá em baixo? ─ tentou ela.
 O lince balançou a cabeça negativamente.
            ─ Eu devo ir sozinha?
Agora, ele balançou a cabeça positivamente.
            Apavorou-se novamente. ─ Não, espere aí! ─ e voltou a olhar o fundo do penhasco ─, você não está esperando que eu...
             Antes que terminasse de falar; o lince saltou em sua direção, e a empurrou com pelas costas com suas patas dianteiras. E bem na beirada do penhasco, brecou com suas patas traseiras para não cair junto. E despediu-se com um sorriso desdenhoso. A garota despencou, velozmente, pela garganta do penhasco. Que, aparentemente, se perdia em uma imensidão infinita. Gritou em desespero em sua descida, embora, de nada adiantasse; seus gritos se perderam em meio ao vão. Demitira sentia seu corpo tocando as nuvens e a neblina gélida. Novamente entrou em êxtase e permaneceu inconsciente.
             ─ Demetria? ─ sacudiu-lhe os ombros ─ vamos, mocinha! Isso! Retorne devagar. ─ dizia o velho feiticeiro, passando a mão sobre seu rosto.
            Demitria estava agora no mesmo local de onde partira; deitada sobre a grande mesa de pedra. Sendo monitorada, atentamente, pelo seu avô.
            Ela abriu os olhos devagar. E a claridade do sol de fim de tarde pareceu incomodá-la. Tornou a fechá-los.
            ─ Vovô?...vovô? ─ chamou, chorosa.
            ─ Estou aqui...estou bem ao seu lado.
            ─ Onde estou?
            ─ De volta às Montanhas Prateadas, em Osmord. ─ respondeu ele.
            ─ O que aconteceu com o...
            ─ O lince? Não veio.
            ─ O senhor o viu?! ─ Viu que ele me...
            ─ Não, não vi, mas pude senti-lo ─ interrompeu-a.
            ─ Vovô, eu o encontrei! ECONTREI! ─ gritou exaltada e pulou sobre o colo do avô.
            Ele a abraçou carinhosamente. ─ Sim, mocinha; tem razão, o encontrou. Parabéns! Bom trabalho!
            ─ E agora, vovô? ─ perguntou curiosa.
            ─ Agora? ─ abriu o longo sorriso amarelado – Agora nós precisamos nos apressar se quisermos chegar à Cardamomo antes do anoitecer. ─ disse ele, mirando o céu, onde o sol estava muito baixo, quase se retirando.
            Preparam partida e seguiram descendo as colinas.

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