Hoje escreveria um novo poema, nele faria um
novo amanhã. Mudaria o rumo das coisas. Não deixaria que seus desejos se
perdessem em meio ao vão. Tentaria não cometer os mesmos erros. Foi-lhe dada
uma nova chance, poderia tentar de novo. Mesmo perdendo, sentiria prazer na
perda, porque perder nunca é o inferno, perder é a renuncia daquilo que já não
se quer, daquilo que jamais se quis, daquilo que talvez nunca se tenha tido, é
o entregar ao destino tudo que já não cabe. Devolver a vida o que já não
encaixa na cápsula pessoal do ser, desfazer o que outro já não importa,
descortinar o não-visto, o imperceptível, o distante. Mesmo que tentasse
mostrar o que não queria, correria o risco, o desejo de não ter mais o que não
mais esperava, a vontade de já não encontrar em anseios aquilo que já não mais
se almeja. Devolver de volta tudo estagnado, parado aos cantos, que ocupa um
espaço não permitido, que faz com que a mente não pare de pensar, de se mostrar
alheio a qualquer preocupação semelhante. A cada palavra escrita um novo
começo, a cada novo começo um tropeço. Tropeçar nem sempre é desequilibrar, é
não ter força o suficiente para se manter firme na base da vida. O equilíbrio
não é de um todo vital para o ritmo de tudo.
Não escreveria mais em
linhas tortas o que tinha para dizer; já não fazia mais sentido não se fazer
entender. O dito pelo não dito, palavras bem desenhadas vazias de sentido
algum, o que sai pela boca nem sempre é o expressar do corpo. Corpo e mente não
expressam em sintonia desejo equivalente, o agir distante do pronunciar,
palavra toca, gesto derruba. Tudo feito, tudo falado, ambos desfeitos. Iria
expressar tudo que sentia, sentia que aquele era o momento. A cada imagem
formada, a cada recorte captado pela lente dos olhos da alma, o que se impregna
em vestes, as cores dos tecidos trançados juntos outrora. De novo o que se ver
está distante, distante dos olhos, distante da lente, distante do coração.
Acreditava que através daquelas linhas tudo voltaria aos seus devidos lugares.
Precisava juntar tudo o que havia sido perdido e conduzi-los novamente ao seio.
Das vezes que apanhava as areias soltas ao longo do caminho, dos anseios
perdidos, do medo indo e vindo, daquilo que jogou fora e não mais buscou. Onde
não mais voltaria ao manejo das mãos, tudo era voltas e voltas, contornando
soluções em torno de situações indesejadas, de perdidos pensamentos reinantes
em solos frágeis e instáveis.
Faria que seguissem a
canção, já não tentaria mais mudar o ritmo. Precisava dizer que já não fazia
sentido todos àqueles escudos que foram projetados. Uma vez lançado, não impede
de atingir o alvo, tudo já fora, a quem pegar não há retorno, é um acerto,
acertando contas, dilacerando entranhas, rompendo estruturas internas, é agora
o fim, o dispensar dos que já estavam soltos e desfeitos, não mais agora, no
desfalque, já não se alinha mais adiante, tudo que era retalhado no horizonte,
não de agora, de longe. Entrando e saindo, percorrendo escadas tortas, degraus
escorregadiços, piso inconstantes, sentimentos caídos, lágrimas derramadas,
rastros perdidos, agora e sempre, uma vez chegando, outra vez partindo. Tudo
retornando, se embrulhando em folhas secas, o inverno chegando, o café exalando
cheiro, a lareira torrando lenhas, carvão, quente, prazer, tentação, medo,
suor, receio, ritmo. Encontrado o que de dentro ansiava, já era tarde, todos
distantes, roupas ao canto, a não preocupação de tudo, antes era só beijos,
acalentos, carinhos, toques, arranhados, arranhando coração, arranhando o
caminho.
Eles já não precisavam
mais separá-los. Mostrá-lo-ia como derrubá-los para acessá-lo. Acredite, não
seria difícil, apenas precisaria ser perspicaz. Precisava mostrá-lo como andar
por aquela ponte; ela ligava seu ego a ele. Andando ao ritmo dos distantes, do
que não se busca, desfazendo leitos, mágoas secando, recolhendo sofrimentos,
buscando ao longe o agora, não tenhas medo, não é de mentira. Tudo em realidade
se faz, fazendo o caminho novamente, buscando o que desfizera, apagando as
letras na areia, não tenhas medo, não é o medo a porta para o sofrimento, é
algo maior. Precisava ensiná-lo a ter malícia; não precisava ter todo o
equilíbrio do mundo. Deveria ser centrado e conseguiria atravessá-la. Ela
poderia tremer, não devia esquecer-se. Mas se aquele era o seu objetivo, não
deveria deixar-se intimidar. Tens a espada a frente, com ela a busca pelo
afrontar desejo é mais fácil, mostre aos monstros-medos, rompendo os
escudos-raívas, já foi, já era. Não trago junto o que não queres, pego de
tormento e afogo em sentimentos, tenho teus olhos, teus pensamentos. Atravessar
os fios da consciência, caminhando sozinho, devorando a razão, engolindo os
gelos da alma, sofrendo a perda, cuspindo tristezas. Já não vejo perto, meus
olhos ofuscados pela luz de tua racionalidade, lágrimas rasgando o que não
tenho, ferindo dentro, revelando o que não vejo. Atravessará todo, mas fique
agora desse jeito, a ponte balança mais não cai, não olhe para baixo, não
verás, não enxergará.
Precisava ensiná-lo a
andar naquela floresta escura de anseios; não podia ter receio. Se fosse
honroso e agisse com cautela; todas as criaturas do ego poderiam vir a baixo.
Teria que ter em mente como superá-las, era fácil, precisava saber ser, sabe
ousar. Esse era o caminho, podia ir quando desejasse. Podia acessá-lo se
tivesse vontade, só não tinha a garantia que iria gostar. Não sabia se o seu eu
lhe caberia. Porque todos os meus gostos mofaram, apodreceram sobre a toalha da
vida, agora o que tenho é medos, desejos estranhos, não os busco, acesso-os. E
quando te vejo, tento uma busca, tento e frustro-me. É assim que vivo, vivo o
agora e não mais o amanhã. Olhando agora para aquele canto deverá subir bem
mais, deixar as malhas nas pedras, sente frente ao mar. Ver? Não é agora, é
mais além, continue andando, não pare a frente, continue atravessando as ondas,
olhe o mar, é salgado. A água é suja e salgada, também sou oposto, tenho lados
diferentes, sou assim, uma ora puro sal, outrora muito doce. Não vivo estes
anseios de forma linear, não estou agora, não estou nunca. Aproxime-se da casa
de palha, lá guardei lembranças, de todos os momentos, de todos os símbolos
conscientes, formas abstratas, pinturas antigas, abjetos presentes. Cavando
fundo acessará, mais abaixo está o mais íntimo, mais abaixo o que não posso
revelar, tens certeza que queres? Continue a buscar mais ao fundo, lama,
mal-cheiro, desprazer, desilusões, angústias, agora é o momento, pare ou siga.
Tudo é isso, não é nada, não tenho muito, pouco ofereço. É isso.
Quando o fim estiver
próximo todo esse ritmo se desfaz, as coisas serão descartas, na busca não se
encontra o que nunca esteve lá, o que se ganha não é o que se merece, é o que a
vida reserva. Todas as cascas foram arrancadas cuidadosamente, retirando as
maiores, depois a menores, devagar, para não machucar, o que está abaixo do
casulo se revela com calma, não é bem-vindo a todos os olhos. A essência que
banha a mais íntima da peles está coberta de pragas-sensações difíceis, não
olhe, não permitirei que veja, já não pode suportar, vá embora! Solte-me, rompa
com isso, solte as cordas, devolve minhas linhas, desfaça meu ponto-cruz, jogue
meus antídotos fora, não os beba mais. Quando viraste, devo recolher-me, é
agora, vai indo e vejo suas costas, continua andando, arrastando de volta ao
casulo. De volta ao abrigo, forte sou. Não o tenho, mais me tenho, e tenho
tudo.
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