segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Renovo, de novo

  

     Hoje escreveria um novo poema, nele faria um novo amanhã. Mudaria o rumo das coisas. Não deixaria que seus desejos se perdessem em meio ao vão. Tentaria não cometer os mesmos erros. Foi-lhe dada uma nova chance, poderia tentar de novo. Mesmo perdendo, sentiria prazer na perda, porque perder nunca é o inferno, perder é a renuncia daquilo que já não se quer, daquilo que jamais se quis, daquilo que talvez nunca se tenha tido, é o entregar ao destino tudo que já não cabe. Devolver a vida o que já não encaixa na cápsula pessoal do ser, desfazer o que outro já não importa, descortinar o não-visto, o imperceptível, o distante. Mesmo que tentasse mostrar o que não queria, correria o risco, o desejo de não ter mais o que não mais esperava, a vontade de já não encontrar em anseios aquilo que já não mais se almeja. Devolver de volta tudo estagnado, parado aos cantos, que ocupa um espaço não permitido, que faz com que a mente não pare de pensar, de se mostrar alheio a qualquer preocupação semelhante. A cada palavra escrita um novo começo, a cada novo começo um tropeço. Tropeçar nem sempre é desequilibrar, é não ter força o suficiente para se manter firme na base da vida. O equilíbrio não é de um todo vital para o ritmo de tudo.
Não escreveria mais em linhas tortas o que tinha para dizer; já não fazia mais sentido não se fazer entender. O dito pelo não dito, palavras bem desenhadas vazias de sentido algum, o que sai pela boca nem sempre é o expressar do corpo. Corpo e mente não expressam em sintonia desejo equivalente, o agir distante do pronunciar, palavra toca, gesto derruba. Tudo feito, tudo falado, ambos desfeitos. Iria expressar tudo que sentia, sentia que aquele era o momento. A cada imagem formada, a cada recorte captado pela lente dos olhos da alma, o que se impregna em vestes, as cores dos tecidos trançados juntos outrora. De novo o que se ver está distante, distante dos olhos, distante da lente, distante do coração. Acreditava que através daquelas linhas tudo voltaria aos seus devidos lugares. Precisava juntar tudo o que havia sido perdido e conduzi-los novamente ao seio. Das vezes que apanhava as areias soltas ao longo do caminho, dos anseios perdidos, do medo indo e vindo, daquilo que jogou fora e não mais buscou. Onde não mais voltaria ao manejo das mãos, tudo era voltas e voltas, contornando soluções em torno de situações indesejadas, de perdidos pensamentos reinantes em solos frágeis e instáveis.
Faria que seguissem a canção, já não tentaria mais mudar o ritmo. Precisava dizer que já não fazia sentido todos àqueles escudos que foram projetados. Uma vez lançado, não impede de atingir o alvo, tudo já fora, a quem pegar não há retorno, é um acerto, acertando contas, dilacerando entranhas, rompendo estruturas internas, é agora o fim, o dispensar dos que já estavam soltos e desfeitos, não mais agora, no desfalque, já não se alinha mais adiante, tudo que era retalhado no horizonte, não de agora, de longe. Entrando e saindo, percorrendo escadas tortas, degraus escorregadiços, piso inconstantes, sentimentos caídos, lágrimas derramadas, rastros perdidos, agora e sempre, uma vez chegando, outra vez partindo. Tudo retornando, se embrulhando em folhas secas, o inverno chegando, o café exalando cheiro, a lareira torrando lenhas, carvão, quente, prazer, tentação, medo, suor, receio, ritmo. Encontrado o que de dentro ansiava, já era tarde, todos distantes, roupas ao canto, a não preocupação de tudo, antes era só beijos, acalentos, carinhos, toques, arranhados, arranhando coração, arranhando o caminho.
Eles já não precisavam mais separá-los. Mostrá-lo-ia como derrubá-los para acessá-lo. Acredite, não seria difícil, apenas precisaria ser perspicaz. Precisava mostrá-lo como andar por aquela ponte; ela ligava seu ego a ele. Andando ao ritmo dos distantes, do que não se busca, desfazendo leitos, mágoas secando, recolhendo sofrimentos, buscando ao longe o agora, não tenhas medo, não é de mentira. Tudo em realidade se faz, fazendo o caminho novamente, buscando o que desfizera, apagando as letras na areia, não tenhas medo, não é o medo a porta para o sofrimento, é algo maior. Precisava ensiná-lo a ter malícia; não precisava ter todo o equilíbrio do mundo. Deveria ser centrado e conseguiria atravessá-la. Ela poderia tremer, não devia esquecer-se. Mas se aquele era o seu objetivo, não deveria deixar-se intimidar. Tens a espada a frente, com ela a busca pelo afrontar desejo é mais fácil, mostre aos monstros-medos, rompendo os escudos-raívas, já foi, já era. Não trago junto o que não queres, pego de tormento e afogo em sentimentos, tenho teus olhos, teus pensamentos. Atravessar os fios da consciência, caminhando sozinho, devorando a razão, engolindo os gelos da alma, sofrendo a perda, cuspindo tristezas. Já não vejo perto, meus olhos ofuscados pela luz de tua racionalidade, lágrimas rasgando o que não tenho, ferindo dentro, revelando o que não vejo. Atravessará todo, mas fique agora desse jeito, a ponte balança mais não cai, não olhe para baixo, não verás, não enxergará.
Precisava ensiná-lo a andar naquela floresta escura de anseios; não podia ter receio. Se fosse honroso e agisse com cautela; todas as criaturas do ego poderiam vir a baixo. Teria que ter em mente como superá-las, era fácil, precisava saber ser, sabe ousar. Esse era o caminho, podia ir quando desejasse. Podia acessá-lo se tivesse vontade, só não tinha a garantia que iria gostar. Não sabia se o seu eu lhe caberia. Porque todos os meus gostos mofaram, apodreceram sobre a toalha da vida, agora o que tenho é medos, desejos estranhos, não os busco, acesso-os. E quando te vejo, tento uma busca, tento e frustro-me. É assim que vivo, vivo o agora e não mais o amanhã. Olhando agora para aquele canto deverá subir bem mais, deixar as malhas nas pedras, sente frente ao mar. Ver? Não é agora, é mais além, continue andando, não pare a frente, continue atravessando as ondas, olhe o mar, é salgado. A água é suja e salgada, também sou oposto, tenho lados diferentes, sou assim, uma ora puro sal, outrora muito doce. Não vivo estes anseios de forma linear, não estou agora, não estou nunca. Aproxime-se da casa de palha, lá guardei lembranças, de todos os momentos, de todos os símbolos conscientes, formas abstratas, pinturas antigas, abjetos presentes. Cavando fundo acessará, mais abaixo está o mais íntimo, mais abaixo o que não posso revelar, tens certeza que queres? Continue a buscar mais ao fundo, lama, mal-cheiro, desprazer, desilusões, angústias, agora é o momento, pare ou siga. Tudo é isso, não é nada, não tenho muito, pouco ofereço. É isso.
Quando o fim estiver próximo todo esse ritmo se desfaz, as coisas serão descartas, na busca não se encontra o que nunca esteve lá, o que se ganha não é o que se merece, é o que a vida reserva. Todas as cascas foram arrancadas cuidadosamente, retirando as maiores, depois a menores, devagar, para não machucar, o que está abaixo do casulo se revela com calma, não é bem-vindo a todos os olhos. A essência que banha a mais íntima da peles está coberta de pragas-sensações difíceis, não olhe, não permitirei que veja, já não pode suportar, vá embora! Solte-me, rompa com isso, solte as cordas, devolve minhas linhas, desfaça meu ponto-cruz, jogue meus antídotos fora, não os beba mais. Quando viraste, devo recolher-me, é agora, vai indo e vejo suas costas, continua andando, arrastando de volta ao casulo. De volta ao abrigo, forte sou. Não o tenho, mais me tenho, e tenho tudo.

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