Quero ser bonita, dizia.
Arrastou uma das cadeiras do quarto para perto do gigante espelho de cobre, no
quarto da mãe. Sobre a cama já tinha selecionado os melhores pós, perfumes,
joias, e tudo o mais que achava que lhe daria uma aparência mais feminina e que
lhe deixasse o mais próximo da imagem de suas duas irmãs mais velhas e de sua
mãe. Correu ao guarda-roupa e retirou um vestido cor de açafrão, o mais decotado
dos; se vestiria algo de mulher adulta, teria que ser o mais ousado possível.
Antes de se vestir, despiu a roupa e deixou-as de lado. De frente ao espelho observou-se e mirou os
peitos, passou a mão sobre eles. Beliscou as pontinhas, será que algum dia irá
crescer? Pensou. Nesse momento o que mais queria era vê-los grandes tal com os
de sua irmã mais velha, correu à gaveta do roupeiro e retirou um dos corsets da
mãe e alguns pares de meias. Com dificuldade ajustou-o no tronco e subiu até a região do busto.
Olhou melhor e achou que lhe faltava algo, pegou as meias e fez duas trouxinhas
redondas e as encaixou dentro das cavidades dos seios. Pronto, agora tenho
peitos! Riu.
Com tamanha dificuldade
vestiu o vestido da mãe sobre o corpo magro, ficou meio largo, e não se
agradou. Foi até uma das gavetas da cômoda, encontrou um laço de fita e ajustou
sobre a cintura. Ficou estranho, calculou. E não queria vestir algo que não lhe
caísse bem, tirou-o então, e deixou de
lado. Voltou ao roupeiro e tirou dessa vez um vestido de festa, colocou sobre o
corpo, e observou que estava grande demais. Então teve uma ideia genial. Sobre
a penteadeira da mãe apanhou uma tesoura grande, dessas de costura; deitou o
vestido sobre a cama e mediu atrapalhadamente um palmo, e pronto, cortou sem
dó. Ótimo, agora está perfeito, constatou. Pôs sobre o corpo com dificuldade,
travou uma guerra para abotoar os botões traseiros. Mulher adulta sofre,
praguejava mentalmente. Pronto, estou vestida.
Olhou para os pés,
pequeninos, e sem vestígio de qualquer marca feminina. Queria ousar, mulher não
usa sapato baixo, sapato baixo é para homens, repetiu alto várias vezes. Em uma
das arcas, apanhou um desses sapatos de salto bem grande. Calçou, e percebeu
que estava grande em seus pés, mesmo assim com esforço deu um jeito de prender
as amarras firme no calcanhar, não podia cair de jeito nenhum, sabia bem disso.
Para testar, caminhou algumas vezes diante do espelho, treinou por alguns
minutos seguidos, sem parar. Riu de si, que de tão jovem desconhecia o
desequilíbrio trazido pelos calçados altos. Tropeçava, mas nem ligava, sabia
que logo estaria andando como as mulheres elegantes que via nos salões de
festa. Parou e sentou sobre a cama, olhou para todos aqueles apetrechos usados
para maquilar o rosto, pensava em como usá-los. Sabia que a mãe e as irmãs os
usavam, mas como, não tinha nenhuma idéia; apenas tinha a certeza que elas
ficavam deslumbrantes e era assim que queria ficar.
Começou pelo batom,
lembrou que sabia passar muito bem. De frente para o espelho, abriu o pote
pequeno, passou o dedo indicador na mistura, e começou a modelar a boca com a
cera grudenta vermelha, começou pelo lábio inferior e seguiu para o superior.
Em seguida limpou os cantos com o outro dedo, esfregou os lábios, e claro, fez
biquinho, tal como aprendera vendo as irmãs se maquilando. Mirou um dos frascos
claros com uma pasta esbranquiçada, já viu a mãe passando isso pelo rosto.
Abriu o pote e deu a primeira dedada e levou a pasta às bochechas. Começou pela
esquerda, esfregando devagar, jamais perdendo a delicadeza, ouvira certa vez
que a delicadeza é a virtude das mulheres, e é o que queria ser naquele momento
– mulher de verdade. Percebeu que o rosto embranqueceu, achou estranho, mas
sabia que todas as mulheres da Corte
usavam isso, e não deixaria de usar também. Agora é a vez dos olhos, disse
baixinho. Fechou a pálpebra esquerda. Com uma das tinturas que escolheu ─ a
dourada ─ começou a pintar levemente a região, de modo desajeitado, borrava
sempre os cantos, foi o que fez também com o outro olho. Pronto, o rosto estava
todo pintado. Mas e o cabelo? Tinha o cabelo nos ombros, mas queria deixá-lo
mais bonito, então prendeu algumas mechas com presilhas de prata, das irmãs;
deixou-o todo dividido, certamente ficou bonito, pensou para si.
Voltou-se mais uma vez
para o espelho, deu uma volta, jogou o cabelo e conferiu os quadris, sempre via
as mulheres fazerem isso, não sabia para quê, mas achava que era necessário.
Foi até a penteadeira e buscou alguns anéis, alguns definitivamente não
entravam em seus finos dedos, um entrou no dedão, e outro minúsculo entrou no
dedo médio. Este menor, tinha um par, talvez para ser usado no mesmo dedo, não
se sabe. Pegou o outro e ficou comparando-os. Essas serão as alianças do meu
casamento com o Dom Rafael, disse baixinho, enquanto fazia cafuné em seus
próprios cabelos.
Ouviu o barulho de um
abrir de porta, lá embaixo. Qualquer outra criança em sua idade teria corrido
para se esconder com medo da mãe, mas permaneceu onde estava, nem se mexeu,
continuou se admirando no espelho, se achando a menina mais linda do mundo. De
repente a porta às sua costa se abre, e duas figuras surgem no lastro.
─ O que está fazendo? ─ desesperou-se a mãe.
─ Quero ser bonita ─
respondeu sorrindo.
O pai esmurrou a parede. ─
Tire já essas roupas, agora!
─ Calma, Dom Eduardo, por
favor. ─ a mãe tentou acalmar o marido ─ É só uma criança!
─ Não, isso está muito errado, o que você quer
que eu faça? Que eu aceite esse comportamento indecente?!
─ Dom Marcelo, vem aqui na
mamãe, vem? ─ a arquiduquesa tentou acalmar a situação ─ Meu filho, você não
pode usar as roupas da mamãe, você é um menino.
─ Sou menina! ─ respondeu
com convicção.
─ Não, meu filho, você não é menino, você é
me – ni - no...
─ Sou menina!
─ insistiu
─ Não! Isso não pode estar me acontecendo. ─ o
arquiduque colocou as mãos sobre a cabeça, em desespero ─ primeiro a
brincadeira com as bonecas, e agora isso? Até onde isso vai chegar?
─ Papai, eu sou menina,
não é difícil de entender, a ama me explicou que…
─ VOCÊ NÃO É ME – NI - NA!
PARE COM ESSAS ABERRAÇÕES!! ─ o pai esbofeteou o rosto da criança.
O menino disparou a
chorar.
─ PARE! COMO OUSA?! ─ A mãe correu, agarrou o garoto e o pressionou
sobre seu corpo, e em defensiva berrou . ─ SAIA DAQUI, SEU BRUTO, SAIA DAQUI!
O arquiduque empurrou a
arquiduquesa e levantou a mão mais uma vez ao menino travestido, bufou e
afastou-se.
─ MAS...COMO OUSA?! ─ angustiou-se a arquiduquesa.
─ O que está acontecendo? ─ perguntaram duas
vozes recém-chegadas à porta, em uníssono.
─ Ah, céus… Dom Marcelo, o
que você fez? ─ perguntou uma delas,
espantada, ao olhar para o irmão trajando roupas femininas e todo pintado.
A que parecia ser a mais
velha, riu, timidamente.
─ Eu já sabia.
O pai também a silenciou
com uma bofetada sobre o rosto. ─ CALE-SE!
─ SEU TROGLODITA! VÁ
EMBORA! ─ a mãe levantou-se rapidamente para a acudir também a filha. ─
GUARDAS! GUARDAS!
Três soldados entraram
rapidamente ao quarto.
Vossa Alteza! ─ disseram em uníssono, ao
curvarem-se diante da arquiduquesa.
─ Capitão Heitor, e demais
cavalheiros, ordeno-lhes a prisão do arquiduque! Por desacato à minha
autoridade! ─ ordenou ela.
─ Não ousem encostar-se a
mim! ─ proferiu o arquiduque.
─ Prendam-no agora! ─ insistiu a arquiduquesa.
─ Você não pode fazer
isso! ─ choramingou ele.
─ Não? ─ riu desdenhosa ─ até onde sei sou a
senhora dessa casa, as ordens aqui cabe a mim, senhor meu marido!
─ Prendam-no agora e comuniquem à Sua
Majestade sobre a prisão do arquiduque.
─ Vossa Alteza! ─ os
soldados curvaram-se novamente a arquiduquesa e agarram o arquiduque pelos
braços.
─ Dona Rafaela, por favor,
para que tanto?
─ Para que tanto? ─ desdenhou
novamente a arquiduquesa ─ O que dirá mamãe ao saber que acabara de ferir a
honra do Duque e da Duquesa de Campos, ao agredi-los violentamente em minha
frente?
─ Por favor, minha
senhora, não envolva a Rainha nesses assuntos particulares.
─ Reze para que ela não
guilhotine sua cabeça na primeira hora do dia de amanhã! ─ virou as costas ao arquiduque
e ordenou aos guardas que os levassem embora.
Uau, gostei muito bom.
ResponderExcluir