domingo, 26 de maio de 2013

Diário de Ana fulana de tal I



Viu aquela imagem magra, pálida, olheiras fundas, corpo esguio, cara de quem não dormia há séculos. Arrumou os cabelos, quando passou a mão por entre as mechas percebeu um punhado de fios soltos entre os dedos. Preocupou-se. Olhou a barriga funda, parecia estar quase sem vida, comprimiu-a e percebeu que parecia não ter mais órgãos. O que houve a mim? Será que apanhei uma moléstia? Tornou a olhar a si e olhou aos dedos dos pés, o pé tão branco e as veias saltadas sobre os músculos, causava-lhe repulsa, afastou os olhos e correu pelo quarto meio-escuro, em exceção pela luz do sol fraco que adentrava o recinto pouco convidativo. Ergueu a camisola, olhou as pernas, eram magras como há anos não tinham sido, pensou ─ seria isso que o teria afastado de mim? Não quis saber, correu a cama, sentou, buscou com os pés as sandálias de lã e tomou a calçá-las. Voltou-se ao roupeiro em busca de algo a vestir, pegou o primeiro vestido que viu a frente, pouco importava agora o qual era mais bonito e o que era mais feio, não sairia ─ por que se preocuparia com a aparência? ─, ou melhor, há tempos não se convencia em estar bela, e agora não seria esse o momento para tais brigas com o ínfimo. Agora estava sentada sobre a penteadeira e pegou-se a pentear os longos e finos cabelos, com muito cuidado, lembrou do seu estado fraco, e que se descuidasse cairia aos montes, será que o povo desejaria uma rainha careca? Indagou. Não, não desejaria. Embora soubesse que a tal altura, eles desejariam, certamente, que uma mulher não tivesse jamais se sentado ao trono.
Pouco se dava ao que o povo dizia de sua política, recordava que o que mais tinha feio nos últimos meses foi dedicar sua vida integral ao que desejavam, e o que tinha ganhado com tudo aquilo? Nada. Apenas ingratidões e pouco valorizava sua dedicação e fingiam gostá-la, mas no fundo sabia que seus falsos júbilos eram tão repugnantes como as mais graves das chagas. E nesse momento não queria preocupações, apenas queria estar apta a raciocinar com razão e deixar de lado qualquer interferência que pudesse lhe arrancar do mundo e fazer-la distante por alguns segundos.
Sabia que tinha obrigações, e que estas não poderiam ser substituídas por pensamentos fracos que lhe vinham à cabeça e voltavam ao raio que os tinha trazido, com a mesma força. Precisava estar forte diante do velho padre, para dizer o que tinha vontade e jamais poderia pensar em hesitar e tampouco ser contraditória em suas palavras, porque qualquer passo mal dado lhe fadaria o infortúnio de voltar ao mesmo estágio de onde saiu ─ fraca e impotente ─ e já não desejava estar mais ali, queria estar distante de toda aquela realidade que a consumia e que a nada trazia. Voltou ao espelho de onde tinha emergido agora pouco. Sentiu-se fraca. Mas ergueu-se, agarrando a forças que não sabia de onde brotava. Bateram a porta.
 ─ Entre! ─ Ordenou.
─ Majestade ─ a figura de cabelos bagunçados e trajando trapos, adentrara a pouco e se curvou diante da rainha. ─ Devo ordenar que seja servido seu desjejum?
─ Não sei tenho vontade de deixar a clausura desse infeliz quarto ─ disse cerrando os punhos e caminhando sobre o nada, pelo piso do quarto. ─ Onde está ele?
A escrava abaixou a cabeça e ficou desajeitada.
─ Anda, lhe fiz uma pergunta! ─ irritou-se ─ Ou será que terei eu mesma que lhe arrancar as respostas junto com sua língua?
─ Está lá em baixo, senhora, dormiu no quarto de um de suas aias de companhia.       
─ Desgraçado!
─ Descul…
─ Suma da minha frente e leve junto com você o seu desjejum para o mais profundo dos infernos!
─ Majestade. ─ a escrava curvou-se mais uma vez e deixou o quarto a passos ligeiros.
                 
Ana de …, mais uma vez sentia o pesar de estar a frente de um reino falido e que lhe trazia tantas dores de cabeça tal como o seu casamento agourento com o Duque de Carvalho. Inclinou-se sobre a cama e tornou a chora e esbofetear os travesseiros. Sentia-se mal assim como tinha se sentido durante todo o verão passado, e sabia como poderia se sentir de tal maneira, pensava ser sempre uma mulher de tanta garra e que encarava a pior das situações sempre com pés no chão. Não sabia ao certo quando e como ali tinha chegado, sabia que o fundo do poço lhe convidava; ou era essa a sensação que lhe vinha a mente de quando em quando. Desde abrir os olhos no começo do dia até o fechar dos mesmos, no final deste. Sabia que durante muitos meses as coisas lhe fugiram de um total controle, por mais que tentasse manter o ritmo da realidade, sempre permanecia na inércia de uma abstração que lhe descia a garganta de maneira tão cruel e dolorosa.
Quando o pai ainda lhe era presente, pensou que todo o ofício de governar um povo lhe tinha sido passado, mero engano. Ao sentar ao trono de pedra, percebia que quanto mais achava estar por cima das ordens, eram estas que lhe acorrentava as mãos de maneira rápida e certeira, sem pena, e ligeira. Sabia que para início de conversa, ser mulher e ser político eram tarefas distantes à época, dizia a grande maioria; por mais que nos últimos anos tentava não se convencer dessa afirmação insolente . Seu fraco coração parecia se convencer fielmente de tal afirmativa. Tentou de todo modo se mostrar diferente dessa aparência que lhe caiu nos últimos meses, mas era difícil, e ora como era. Embora quisesse ver a diferença frente aos seus olhos, ela não estava ali quando precisava.
       

       


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