sábado, 25 de maio de 2013

Tirados

      ─ Deite-se sobre a esteira, jovem. ─ orientou a velha de olhar baixo e cabelos desgrenhados, enquanto atirava ervas sobre a panela de barro ao fogo, a mistura fervia tanto, ao passo que o quarto enchia-se de fumaça cinzenta, quase tóxica e que fazia mal aos olhos. Jane sentiu o estômago embrulhar só de respirar o cheiro agre da bebedura, pontadas internas vinham-lhe à barriga ao ouvir o som de cada bolha levantada da água em ebulição. Deitou o rosto de lado sobre a esteira, tentou fechar-se ao mundo, enquanto lhe era feito o processo de ‘tiragem’, não queria se sentir culpada pelo ato. Nos últimos dias apenas consolou-se em saber que aquilo lhe deixaria livre de responsabilidades, no entanto, não tinha certeza se sentiria culpada ou teria arrependimento quando tudo, por fim, terminasse.
Perguntou.
─ Ele sentirá?
─ É o quê, menina?
A garota apontou para a barriga.
─ Não, ainda nem é gente. ─ respondeu a velha, balançando a cabeça.
─ E eu?
─ Agora é tarde para perguntas. ─ Adiantou à moça um copo de barro suado, cheio de chá escuro. ─ Agora beba, sentirá um amargo, não pare, beba tudo.
A jovem fechou os olhos e apenas engoliu a bebida escura. Um misto de amargo e salgado desceu-lhe a garganta, a temperatura elevada da bebida ao tocar sua boca lhe fez tossir duas ou três vezes. Após ingerir tudo, encolheu-se sobre a esteira e lágrimas banharam seu rosto. Sentiu-se ruim e sua cabeça dava voltas, deitou e fechou os olhos. Morta, pensou.  Ao mexer os dedos dos pés, concluiu que não. Imaginou como seria a vida de mãe, apalpou a barriga. O que tinha feito? Embora não tivesse certa consciência, sabia que o que acabara de fazer lhe custaria dias, ou talvez meses de sono. Voltou-se à velha, que calmamente arrumava seus vidros de ervas sobre as prateleiras acima do fogão-de-lenha. Parecia tão tranquila com toda aquela situação, que não demonstrava resignação alguma. Talvez estivesse tão acostumada com as práticas de ‘tiragem’ que já tivesse pegado gosto pelo ofício.
─ Como me sentirei? ─ quis saber a moça.
─ Como quem se livrou de um fardo ─ respondeu sem cerimônias ─ Olhe pra você, uma jovem que nem seios ainda têm para dar leite. O que teria feito se tivesse o infeliz? Pediria esmolas para dar-lhe de comer?
A jovem encolheu-se sobre a esteira. Sentia-se suja em saber que a velha desenhou a verdade diante dos seus olhos, que trouxe sua cabeça de volta a superfície da realidade.
─ Vá e deixe o combinado sobre a mesma. E já sabe. Você nunca me viu e jamais entrou nessa casa. Em sete dias, no máximo, ele descerá, e terá o seu resultado.
Jane levantou-se e sentia ardências no estômago. Afastou a blusa um pouco de perto do seio, e apanhou um saco de moedas, tão amassado e sujo quanto sua dignidade estava agora. Fez como ordenara a velha, deixou sobre a mesa e saiu em passos apressados e jamais ousou olhar para trás.  Caminhou por algumas horas junto de sua trouxa de roupa, sem saber onde iria passar a noite dessa vez. Ignorou qualquer pensamento, apenas caminhou e caminhou. Ao longe ouviu o barulho frenético de rodas riscando a estrada. Ignorou.  E nem olhou para trás, mais uma vez. Deve ser só mais algum miserável bêbado arriscando a vida, concluiu. O barulho aumentou e chegava-lhe com maior frequência aos ouvidos. Dessa vez decidiu por olhar o que estava acontecendo. Antes que seus olhos encontrassem o motivo da bagunça, o miserável bêbado já estava em cima de seu corpo em falência; com sua carruagem forjada em ferro maciço, amassou-lhe o tronco por completo. A última imagem que viu foi dos raios solares que lhe queimava o rosto moribundo, enquanto pessoas descidas da carruagem se aglomeravam ao seu redor para ver a desgraça recém-armada.


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