I
Sobre a tribo Baruá caia o
mais duro dos regimes civilizacionais. Criados eram os guerreiros, entre duros
treinamentos e pouco tempo vago, para que não tivessem tempo ao menos de
respirar direito e tampouco se sujeitassem a pensamentos que estivessem à
margem de suas vidas árduas. O capitão gritava em bom tom, diariamente, que os
guerreiros Baruá eram homens apenas por terem nascido presos a um corpo humano,
mas que o seu instinto e alma eram tal como o do lobo-guará, a quem deveriam
seguir e espelhassem enquanto soprassem vida. Existir enquanto guerreiro tribal
era uma virtude, certamente havia suas dificuldades, mas estas deviam ser
descartadas enquanto era tempo. A maioria dos homens ali presentes fora
submetidos ao calor da batalha desde tenra idade, ainda em vestes joviais,
ouvia aos seus patras dizer que homem Baruá é homem guerreiro, ser do exército
é honra, o contrário é fracasso de vida. Desta forma, homens ali nascidos
poucas escolhas tinham. Tens braços fortes e aptidão a segurar uma lança? É para
o exército a que nasceu, meu filho! Ouviam.
O Capitão seguro de si, autoritário, e de pouca prosa, antes das
baterias de exercícios, recitava religiosamente aos rapazes o aun, o guia do
guerreiro, mais tarde chamado de manual de sobrevivência e conduta de guerra. E
para quê? Dizia ele que guerreiros bem formados são os que grafam em sua mente
os mandos de sua tribo e em nenhum instante pensa em desordens disciplinares.
Seguida a ladainha diária prenunciada, os guerreiros voltavam-se às lições de
exercício físico ao solo barrento, tão vermelho e duro como madeira que se
forja armas.
Maélia, a velha xamã
tribal, filha da jaguatirica, mirava ao fundo, na mata seca que ficava próximo
ao campo de treinamento. Pensava consigo mesma, quem é o Capitão para falar aos
homens? Nem conhecedor dos mistérios masculinos é. Com que valia transmite aos
homens valores morais se nem ao mesmo conhece o seu mais íntimo? Pensava e
irritava-se. Preferia não aproximar e nem dialogar com o Capitão, sentia que a
troca de informação com o mísero ser não era empática e lhe custaria tempo, e
que em tais circunstâncias tempo era ouro. Voltou-se a estrada acidentada que
conduzia às moicas¹, ergueu os velhos trapos deslizados sobre as pernas a que
chamava manto, e sumiu sem deixar rastro.
Os guerreiros permaneceram
em seus exercícios esgotantes no chão, enquanto o Capelão passeava desdenhoso
entre eles. Quando lhe vinha a vontade, chutava um ou outro, exigindo-lhe
eficiência e rapidez na execução de sua sequência. Esgotados, os guerreiros
estavam ali desde o primeiro clarão do sol, e nem estavam perto de serem
dispensados; eram liberados de quando em quando, apenas para lubrificar a
garganta com a água do rio sujo abaixo da costeira. Após os exercícios físicos,
seguiam ainda para a lição de armas. E assim fadariam até o meio do dia, sem
previsão de término.
Distribuídos deitados ao
solo, alinhavam-se em escala, eram aproximadamente cinquenta fileiras indianas
com trinta ocupantes em cada uma delas. Na penúltima fileira, na posição quarta,
estava Farbo, um modesto guerreiro, corpo esguio e um porte abaixo da média
exigida pelo exército Baruá. Nos últimos anos a tribo tivera muitos nascidos do
sexo feminino e poucos meninos, e por agouro eram poucos os destinados ao
exército. O rapaz foi um destes, entrou no exército sem ter o porte exigido e
não tinha o que chamavam ória² , a glória nata do guerreiro. Estava ali há dois
verões e não sabia ainda quanto tempo duraria. Tinha receio que fosse expulso e
envergonhasse sua família, tinha certeza que não nascera para a defesa da
tribo, mas pesava sobre seus calcanhares o medo de um aborto militar e a falta
de prestígio que cairia sobre seu bando.
─ Água! Água! ─ Entoou o
Capitão ─ Andem, vão e bebam o que puder, não terão pausa mais tarde. ─ Os guerreiros
quase que ritmicamente levantaram e rumaram para a costeira, em busca do único
alimento disponível durante o rito de treinamento. Em pouco tempo, as margens
do rio avermelhado estava coberta por corpos suados e sedentos. Farbo, não
desceu de primeira, esperaria uma parte dos companheiros retornarem para que
depois descesse em busca de sua parte suja de água. Longe dos olhos do Capitão,
evitava o contato com o restante dos companheiros, porque muitos deles lhe
resultavam em agravos ─ no rio ─ lhe afogavam a cabeça ou lhe atiravam barro,
fingindo serem excrementos. ─ Não vai descer? ─ Indagou uma voz às suas costas.
Virou-se e encontrou os olhos de seu companheiro mais próximo, Arun. ─
Envergonhado, balançou a cabeça, em rejeição. ─ Daqui a pouco desço. ─ Tentou
disfarçar o rapaz. ─ Desça comigo, não deixarei eles te tocarem. ─ Rejeitou mais uma vez e dessa vez nem o
olhou. Arun apenas consentiu com a cabeça, virou as costas e desceu.
O treinamento seguiu até
início do meio dia. O Capitão entoou mais uma vez o toque de recolher e ordenou
aos guerreiros que retornassem às suas moicas, o treinamento estava encerrado.
Amanhã haveria mais, por hoje era só. Os guerreiros rumaram pela mesma estrada
que há anos traçavam uma rua larga, pouco espaçada, e inteiramente cascalhada.
Entre eles, no fim do grupo, Farbo ia a passos lentos, cabisbaixo como de
costume. Arun, que ia a frente, cerrou os passos, deixando ser passado pelos
demais. Esperou por Farbo, que não fazia questão de encontrá-lo, não hoje. ─
Espere! ─ Ordenou quando o jovem passou ligeiro, fingindo não notá-lo. Quando
Farbo parou e mirou-o, solicito-o acanhadamente companhia. Por sua vez, o jovem
disse-lhe achar que seria uma má ideia, e tornou a esquivar, ainda de cabeça
baixa, tentando driblá-lo. Arun ultrajado quis saber por que o maltrato. ─ Não
somos irmãos de guerra, homem-lobo? Farbo timidamente riu-se, confirmou com a
cabeça, ─ é o que dizem.
Seguiram sozinhos atrás do
bando. Farbo evitava olhá-lo, quando Arun desviava o olhar com um achado qualquer
no meio do caminho, ligeiramente o jovem corria-lhe os olhos disfarçadamente.
Arun apercebendo-se do desconforto do jovem em falhar-lhe, tentou arrancá-lo
palavras. Quis saber da matra, da velha matriarca de Farbo, uma senhora vivida
e que cantava sabedoria em cada fio de cabelo-branco nascido. ─ Não tem me
oferecido mais da bebedura da matra³,o que houve? ─ Brincou ─ Ela adoentou-se e
não tive conhecimento? Farbo desfez a suspeita rapidamente. ─ A matra está boa,
só é velha e cansada. ─ Arun disse-lhe admirar a garra da nobre senhora, mesmo
envolta em senilidade, ainda se mostrava preciosa e ativa nos ritos da tribo.
Farbo confirmou acenando levemente a fronte. Explicou-lhe que a matra já não
faz mais a bebedura e tal ofício matrilinear passou a sua mana, que em breve
vestiria as vestes da matriarca. Atento o guerreiro o ouviu e,
estrategicamente, ofereceu-se a visitar a sua matra. Farbo, pego de surpresa, e
sem escudos a lhe sustentar, apenas consentiu transpirando pouca satisfação.
Arun firmou a mão no ombro de seu companheiro-irmão e despediu-se.
Quando adentrou à sua
moica, Jainé, a mana, estava na fonte lavando pontes. Virou-se brevemente.
─ Água?
─ Sim. ─ Aceitou Farbo ─
Que nada bebera durante o treino. Bebeu tanto que sentiu o estômago inflar.
─ A matra?
─ Deitada.
─ Doente?
─ Não ─ Acalmou-o Jainé ─
Cansada, é a idade.
─ Farás bebedura para a
ceia?
─ Não temos ervas,
acabou-se anteontem.
─ Maluá ─ disse ─ Pedirei
a Maluá, ela deve ter, é certeza.
─ Não pedirás, nessa moica
não se faz empréstimos, a matra não aprecia dívidas.
─ Maluá é quase irmã, não
se incomodará.
─ A mim incomoda.
─ Oh, mana, é para Arun.
─ Arun? ─ Interessou-se ─
Arun virá?
─ Sim, ceiará conosco,
mais tarde, no meio da noite. ─ Explicou ─ Preciso das ervas, Arun aprecia a
bebedura da matra.
─ Pois vá e não se demore.
─ Disse ela ─ Punharei a ceia ao fogo.
Farbo a olhou e
sorriu-lhe.
─ Ora, vá, manu!
Quando o jovem guerreiro saiu,
Jainé riu a si mesma. Ela apreciava o grandalhão Arun, admirava-lhe seu jeito
possante.
Ao meio da noite, Jainé
tinha dado conta da ceia e já dispusera sobre a mesa a que faziam as refeições.
Estava no espaço destinado a sua dormida, de frete a sua rede, sentada sobre um
toco minúsculo, pintava-se com a pasta do urucum. Queria estar bonita, pensava
ela. Ajeitara o cabelo, punha o colar de dentes de marfim, envolvera o corpo na
pele clara da jaguatirica. Farbo entrara no recinto e admiro-a.
─ Ora, mana, a pele da
jaguatirica não é para os ritos?
─ Tenho de usá-la, manu,
sabe de meus votos.
Farbo riu e deixou-a.
Adiantou-se a entrada da moica, cadê Arun, que se demora? Passeava de um canto
a outro, impaciente. Mirou ao centro da moica e lá estava a matra, sentada à
mesa e bem alinhada, trajando as vestes da matriarca, a que em poucos dias
seria destinada a Jainé. Jocoso aproximou-se da velha, a quem tinha afago
único. Beijou-lhe a face.
─ A matra sente-se bem?
─ Sim, nasçú, a matra está
boa e forte ainda. ─ Acalentou-lhe os cabelos escuros e oleosos. ─ E você
guerreiro-lobo? Cadê a ventura? ─ A matra está velha e passa mais tempo
deitada, mas a tudo vê.
─ Oh, matra, Farbo é só
júbilos.
─ A matra vê até as
palavras que não descem sobre seus lábios, nasçú. ─ Não está satisfeito com os
deveres militares, não é?
─ Estou matra, Farbo gosta
de servir ao exército.
─ Não, não gosta. Farbo é
homem compassivo, não é de lutas que se engrandeci. ─ Nasceu para os ritos, nasçú, esse é o seu
agoan.
─ Não é …
─ Psiu! ─ Pôs as mãos nos
lábios do jovem ─ Patra, foi patra quem convenceu nasçú ao exército. ─ Matra
dará jeito, já tem falado com Grã-Soã.
Farbo tentou mais uma vez
falar e a matra o silenciou.
─ Farbo irá servir aos
ritos masculinos, o jovem nascera aberto e se formará sacerdote. ─ Farbo não
nascera para usar a força, nascera para usar a intuição.
─ Matra …
O silêncio antes formado
fora interrompido pelo visitante chegado a entrada da moica. Arun deu um passo
a frente e reverenciou a matriarca, fazendo-lhe reverência ainda à porta. Mirou
Farbo e deu um sorriso de comprimento.
─ Adentre jovem-lobo. ─
Convidou a matra. ─ Essa moica o recebe.
Arun entrou timidamente e
caminhou até a mesa, donde estava a sua espera o jovem Farbo e a matriarca
familiar. Moian, a matra, beijou-lhe a face e lhe indicou um dos tocos ao redor
da mesa. Antes de sentar-se, Arun apertou o antebraço de Farbo saudando-o, como
deve ser o cumprimento entre os lobos-guerreiros.
─ É aprazível está em sua
companhia matra, e de seu bando.
─ O afeto é maior de minha
parte, Arun. ─ Assentiu a matra ─ Ande, sente, Jainé não se demorará a servir a
ceia.
Não demorou e Jainé
adentrou ao recinto, bem acentuada e apresentável em seus trajes de
sacerdotiza-Soã.
─ Seja bem-vindo a esta
moica, jovem-lobo! ─ Saudou-o.
─ Agradecido de sua
intenção, senhora ─ Adiantou-se e levantou a receber a bênção da
sacerdotisa ─ A sua bênção, senhora. ─
Curvou-se perante a moça.
Jainé tocou-lhe os ombros
e desenhou em sua testa o caran, três vezes seguidas.
─ Seja guiado pelos
Antigos, guerreiro-lobo! ─ Finalizou.
Sentados à mesa, Jainé
serviu-lhes sopa de carne seca com ervas silvestres e grãos miúdos.
Acompanhando o prato principal, deu-lhes a beber a bebedura concentrada e
amarga de ervas, distribuindo-a em potes menores. Para os aperitivos de
companhia, foram cozidos legumes da terra, cabeças-de-raíz, como chamavam.
Antes de provarem a refeição, Jainé convidou-os ao agradecimento a Mãe-Terra
pelo alimento concedido naquela noite. No primeiro momento a ceia seguiu em
silêncio, como era costume naquela moica, trocavam olhares velados e
centraram-se em seus pratos.
─ À Cy, o meu alimento
compartilho! ─ Exclamou Jainé e derramou parte da bebedura sobre o chão.
─ À Cy, o alimento
compartilhamos! ─ Exclamou primeiro a matra e em seguida os dois jovens.
Repentinamente, matra deitou
a falar do exército tribal, encarando Arun. Quis saber quais valores o jovem já
tinha aprendido e o que carregaria para a vida após a fase de treinamento e se
pretendida seguir carreira. Arun, timidamente, respondeu que gostava do
exército e que acreditava ser ali o seu futuro, gostava do manejo com as armas
e a disciplina que lhe ofereciam.
─ É um trabalho duro,
jovem. ─ Disse ela.
─ Sim, é. ─ Concordou.
Continuou a matra a falar
de suas pretensões para vida do jovem Farbo, em torná-lo sacerdote e fazê-lo
xamã. Arun pareceu surpreso com tal notícia, sabia que o rapaz era desajeitado
para o ofício militar, mas não imaginava que estava por vir um possível aborto
de carreira.
─ Quando pretende
solicitar dispensa? ─ Quis saber Arun, olhando a Farbo.
Farbo apenas balançou a
cabeça em resposta. Ele tampouco sabia dos planos da matriarca, a ele era tão
novidade como a qualquer outro.
Ao fim da ceia, Arun
agradeceu a Jainé o banquete e a matra a hospitalidade. Despediu-se da família
e encaminhou-se a porta, parou, e voltou-se a eles novamente.
─ Não me acompanhas até a
estrada? ─ Mirou Farbo.
Farbo olhou a matra, que
consentiu com um gesto sua ausência.
Os dois jovens saíram a
passos lentos, passeando entre as moicas vizinhas. Estavam ao leste, a moica de
Arun ficava ao sul. Ainda caminhando passaram por um jamboeiro, donde Arun
convidou Farbo a sentar-se sobre os troncos abaixo da árvore. Disse-lhe que
queria conversar, não tinha sono naquela noite. Farbo, acanhado, aceitou e
sentou-se primeiro.
─ Então Farbo desistirá
dos deveres militares? passou a mão levemente sobre seu rosto. ─ E quando
pretendias me contar?
─ Mas eu nem sabia, embora
Arun sabe que não levo jeito... nem o que fazer.
─ Daremos jeito,
encontraremos outro ofício à você, se fará sacerdote, como sugeriu a matra.
─ Não sei se tenho
vontade, sou tão desajeitado, não tenho dons, estou tão perdido...
Arun, silenciou pondo os
dedos sobre seus lábios.
Farbo estranhou e encarou
em silêncio, com olhos baixos.
─ Se estás tão perdido,
deixe-me ajuda-lo a encontrar-se... ─ o robusto guerreiro, desajeitado,
aproximou-se mais de Farbo, trêmulo e um movimento grosseiro, encostou os seus
lábios aos dele.
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